A prisão do imanente

Quando construímos versões imaginárias do Monte Tabor

Carlos Ramalhete
15 min readAug 23, 2020
A Subida do Monte Carmelo, de São João da Cruz

Escrevi outro dia sobre como um erro filosófico de base “trancou” Deus no imanente (na verdade, claro, trancou a percepção humana d’Ele, mesmo por ser impossível trancá-l’O), com horrendos efeitos sobre a Civilização Ocidental como um todo. Continuo hoje, tratando de uma outra forma, pouquinha coisa, muito pouquinha coisa mesmo, mais sutil do que os erros mais grosseiros dele decorrentes — coisas como achar que Deus é um velho barbudo sentado numa nuvem.

Deus, sabemo-lo todos (ou deveríamos sabê-lo), está além da realidade criada, que d’Ele depende para a própria existência. Em outras palavras, Ele não está nem no tempo nem no espaço, ainda que Sua presença realmente permeie tempo e espaço, e a própria existência deles dependa dela. Escreveu sabiamente Santo Agostinho, acerca de sua busca por Deus no imanente: “eu Te procurava fora! Eu, disforme, lançava-me sobre as belas formas das Tuas criaturas. Estavas comigo, mas eu não estava conTigo. Retinham-me longe de ti as Tuas criaturas, que não existiriam se em Ti não existissem.”. Após uma longa busca, pôde finalmente o santo encontrar a Deus quando o buscou “dentro de si mesmo”, e não mais nas “belas formas de Suas criaturas”. Isto, claro, não significa que sejamos todos deusezinhos, ou que sejamos parte de Deus — como querem os panteístas –, nem nada do gênero. Significa, sim, que em nós mesmos é mais fácil ir além da mera aparência, além do que pode ser percebido pelo influxo dos sentidos. E como Ele nos chama amorosamente, fazendo silêncio interior conseguimos ouvir Sua voz em nós mesmos, e finalmente encontrá-l’O.

Mas é infelizmente comum que “Suas belas criaturas nos retenham longe d’Ele”. Como isso pode se dar? E, mais ainda, como lidar com isto? Em primeiro lugar, cabe observar que toda criatura é boa, foi e é querida por Deus, e exatamente por isto ela existe. Sua simples existência já é um bem. De uma certa forma, assim, toda criatura aponta para Deus, bem como toda beleza criada; toda beleza duma criatura Sua (um belo por-do-sol, por exemplo) aponta para Deus como a obra de um grande artista aponta para seu autor. É fácil, todavia, perder este sentido da criatura como sinalização do Divino e simplesmente parar na criatura. Outro dia mesmo eu vi, num grupo destinado à publicação de fotos de bichos bonitos, uma moça que perguntava se alguém saberia de um grupo como aquele em que não pululassem comentários do tipo “como Deus é bom”, ou “que grande graça divina é que exista tal animalzinho”. Esta moça — justamente por parar na beleza da criatura — se ressente quando alguém não pára ali e vai mais longe, percebendo aquela beleza como pálido reflexo da beleza eterna de Seu criador.

Alguns, todavia, mesmo buscando Deus nas Suas criaturas, mesmo sem se negar à busca como a moça, deixam-se prender nas criaturas (como o próprio Santo Agostinho), atendo-se a realidades sensíveis como se elas fossem um fim nelas mesmas. Isto pode se dar de inúmeras maneiras, todas elas representativas de maneiras em que a natureza humana marcada pelo Pecado de Adão facilita que caiamos, trocando nossa primogenitura no Transcendente pelo prato de lentilhas do imanente. Não tratarei aqui de quem ativamente foge de ir além do sensível, como a moça da postagem, mas apenas de quem crê estar buscando a Deus, ou mesmo — o que pode ser ainda pior — de quem crê tê-l’O encontrado em algo que apenas deveria apontar para ele. É como alguém que, numa peregrinação, ao ver na beira da estrada uma placa indicando que o santuário está naquela direção mesma em que ela está andando, a tantas centenas de quilômetros, monta ali mesmo sua barraca, feliz por ter chegado ao término da peregrinação. A placa faz do lugar, o meio substitui o fim (e, por isso, perde sua função de meio).

Quarta passada, cujo Evangelho na forma ordinária da liturgia romana foi a Parábola dos Operários da Vinha (Mt XX,1–16), meu bom pároco comentou na homilia o perigo de tentarmos fazer comércio com Deus Nosso Senhor, “trocando” nossas boas obras pelo Céu, em vez de buscar fazer o bem por Deus ser o Bem. Foi o que me pôs no caminho deste texto. Afinal, realmente, esta é uma forma de se prender ao sensível, “puxando” até mesmo o Céu para a nossa realidadezinha tão menor que ele, tão presa ao tempo e ao espaço. Construímo-nos um “Céu” que por pouco não chega àquele que pregam os muçulmanos, com dúzias de virgens taradas, maconha aos magotes e pisos de mármore, em termos de imanentização do escatológico. Imaginamos nuvens fofas, harpas, anjinhos com asas, e por sobre tudo, um deus que é um velho barbudo sentado numa poltrona, atendendo nossos pedidos de confortos materiais nesta vida e na próxima.

E, realmente, se assim fosse a coisa faria todo sentido do mundo simplesmente propor-Lhe uma troca, em que Ele me daria um emprego bem pago e eu então, e só então, daria esmola aos mendigos. Mas o mendigo — voltando à realidade dos fatos, à tremenda e avassaladora realidade do mundo criado após a Encarnação do Verbo — é o próprio Deus, por assim dizer disfarçado. Afinal, “todas as vezes que vós fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim o fizestes” (Mt XXV,40). O mendigo é para nós ao mesmo tempo uma presença de Deus e um sinal que aponta para Ele e para a Sua Encarnação no tempo e no espaço criados.

Mas não é só o nu, o faminto, o doente ou o preso que aponta para Deus. Tudo aponta de algum modo, e tudo pode servir tanto de indicador da reta direção quanto de falso destino final, afastando-nos d’Ele neste caso. A razão principal da ubiquidade desta tentação, a meu ver, é simples: Deus é “difícil”. Ele é infinitamente simples, e nós somos complicadinhos das idéias, cheios de gostos e desgostos; Ele é puro ato, e nós metamorfoses ambulantes; Ele é bom, e nós tendemos a nos acharmos bons, mesmo tendo plena consciência do quanto nos falta para o sermos; Ele é, antes e além do tempo e do espaço, e nós estamos presos no tempo e no espaço; Ele nos ama sem precisar de nós, e nós, que precisamos d’Ele, não O amamos na mesma medida. E por aí vai. É difícil, repito. É difícil ver na placa de sinalização apenas uma placa de sinalização e, mais ainda, acreditar que ainda nos falta tanto para chegarmos no fim da jornada de santificação, para sermos quem Ele nos criou para ser.

Pois é de santificação que se trata. É para isto, para que sejamos santos no Seu Amor (o que pode ser dito também “no Espírito Santo”) que existimos. E ser santo dá um trabalho enorme!, ainda que na verdade o trabalho nem nosso seja. O que nos santifica é a graça, mas como um carro que puxa prum lado, tendemos a preterir a graça em prol de coisas mais “compreensíveis”, mais fáceis. E é daí que vem a nossa tendência a nos ater às coisas criadas, deixando de lado o caminho real da graça em prol de meros sinais que tomamos pelo caminho ou pelo destino final.

Peço desde já perdão ao leitor pela gigantesca enumeração de exemplos de formas tomadas pelo mesmo erro que segue; se for demais, pule-a e vá direto ao fim do texto. Creio, todavia, que dentre eles talvez haja algum que inadvertidamente lhe venha servindo de obstáculo. Sei bem que eu mesmo já pude perceber em enumerações desta natureza, ao usá-las como exame de consciência — ou de inconsciência! –, imperfeições brutais que me acorrentavam, às quais eu era perfeitamente cego.

Exemplos:

De nossa fraqueza vem, entre tantas outras coisas, o rubricismo de quem chega a deixar de participar duma Missa (em toda a ampla gama de sentidos do termo, de não participar do Sacrifício por ficar prestando atenção no cumprimento das rubricas à ausência física) por conta de a celebração não ser “perfeita”, como se a celebração fosse Deus e se houvesse descoberto ser este deus uma divindade que deixa a desejar diante de nossa imensa superioridade.

Este rubricismo desordenado, aliás, cabe lembrar, não pode ser confundido com a ars celebrandi ordenada, que consiste em fazer dos sinais sensíveis da liturgia indicação clara do caminho a seguir, nem tem sempre a mesma forma. Como sempre, o Inimigo coloca erros de ambos os lados do caminho estreito, para que ao recuarmos horrorizados dum que reconheçamos caiamos sem perceber noutro que ele pôs do outro lado. Há pelos menos três tipos de rubricismo desordenado ainda vivos e atuantes, parando no meio do caminho e tomando o imanente não como sinal do transcendente, mas como fim último da religião: da esquerda para a direita (e só nisto, de haver esquerdas e direitas ao tratar d’Aquele que está além do tempo e do espaço, já dá para perceber que há algo errado), teríamos:

1 — o rubricismo minimalista, pauperista e iconoclasta do modernismo de esquerda, que em sua vertente TL tende a gostar de cibórios de casca de coco e a odiar casulas, e na vertente europeia demanda altares cúbicos de pedra nua e igrejas que consistem de um altar-cubo no centro, um ambão dum lado e um troninho do outro, com cadeiras formando parênteses ao redor destes elementos;

2 — o rubricismo dito “conservador”, em que a Missa na forma ordinária corre o sério risco de transformar-se em concerto de música erudita, a homilia em complicadíssima palestra técnica sobre firulas hermenêuticas, diferenças entre as escolas javista e sacerdotal, ou qualquer outro tema meta-bíblico (claro exemplo de parar no caminho, aliás), quase se esquecendo do próprio Evangelho, e a própria assembléia acaba por ser submetida a uma espécie de “ordem-unida” em que se tentam impedir as expressões devocionais divergentes com coisas do tipo anunciar “inclinai-vos para a bênção”. Aliás, este grassa nos seminários;

3 — o rubricismo tradicionalista, já em pleno campo do modernismo de direita (para quem não leu o muito que já escrevi sobre as vertentes presentes do modernismo, aponto que a nota que mais claramente identifica o modernista atual é a negação da unicidade da Igreja, pregando haver uma Igreja pós-conciliar oposta à pré-conciliar. A diferença entre as facções é basicamente que os de esquerda acham isto um barato enquanto os de direita cospem marimbondos) que pode chegar mesmo a negar até a validade(!) da forma ordinária(!!) do Rito Romano. Dentro deste, aliás, já tive ocasião de presenciar uma divertidíssima — ainda que triste — discussão entre um cartesiano europeu, que defendia com unhas e dentes a missa dialogada, e um kantiano americano, que defendia, com base na tradição irlandesa, que o fiel entrasse mudo e saísse calado da celebração, pois foi para responder que Deus criou o coroinha. Para ambos, o que importava era o que se fazia, e para ambos, com certeza, a exatidão de cada gesto, a “rodadinha” do Agnus Dei e outros detalhes eram certamente cruciais. Se duvidar, nêgo acha que Nosso Senhor, ao subir ao Cenáculo, entoou em latim o Salmo 42. E onde entraria a real participação, ou seja, a nossa união ao Sacrifício ali tornado novamente presente de forma incruenta? Só Descartes sabe.

E da fazeção de coisas com as mãos e a boca também vem, muitas vezes, a confusão entre participação e fazeção, clericalizando o leigo para que, fazendo coisas e muitas vezes usando roupitchas diferenciadas, ele vire um quase-padre. Isto leva, na forma ordinária, a encher o presbitério de leigos para que ocorra o prodígio de o gago ler a primeira leitura, o surdo castigar, digo, cantar o salmo e o fanho a segunda leitura, com leigos aos magotes para distribuir o Santíssimo mesmo havendo menos de uma dúzia de pessoas na Missa, e por aí vai, como se apenas participasse da Missa quem fizesse alguma coisa visível. Daí vêm também as camisetas com imagens de santos que uns usam de “uniforme de missa”, as bandinhas de roque, e, em outros meios, os efeitos mágicos que supostamente teria o véu — magicamente capaz de transformar Kátia Flávia, a Godiva do Irajá, em reencadernação de Nossa Senhora.

Aliás, na mesma linha de fazer da religião algo que se “faz aqui”, e estendendo pela semana o que outros fazem com as camisetas com imagens de santos na missa dominical, está também a moda da “modéstia”, também conhecida como “apostolado da fita métrica”. No mais das vezes, infelizmente, trata-se duma forma muito feminina de afetar superioridade (logo vaidade, o oposto diametral da modéstia real) pelo uso de um uniforme baseado em textos escritos em outras épocas, em que o modo de trajar das pessoas nas ruas era radicalmente diferente. É exatamente o mesmo que o “uniforme de crente” de alguns protestantismos: obrigações tribais de vestuário para descatolicizar (ou seja, diferenciar das demais pessoas) os membros duma seita. E tome véu, e tome saia que tem que descer até sei-lá-onde, camisas que devem ter este ou aquele comprimento, e por aí vai. E ai da moça que não usa o uniforme: perde o “lugar de fala” e é vista como uma impura Jezebel.

Evidentemente há formas e mais formas de se vestir de modo pudico sem usar uniforme. Aliás, é só assim que se pode vestir de modo pudico, pois a ostentação de uma roupa propositadamente diferentona já é uma forma de impudicícia. Se ela é usada como sinal de suposta superioridade moral, a coisa fica ainda mais feia. E se a escolha de vestuário faz as vezes de religião, o buraco é fundo e acabou-se no mundo.

Ao mesmo time da “diferentice”, desta feita misturada com rubricismo, também pertencem os que crêem que a prática da religião consiste em forçar a barra e causar escândalo. Paradoxalmente, é apenas a versão direitista do mesmo modernismo que leva outros a clericalizar o leigo: uma primazia da ação física e sensível em detrimento da contemplação, uma substituição da religião pelo confronto aberto e agressivo com o que se percebe como erro (que pode até o ser, sem que isso justifique o escândalo). Houve numa capital um grupelho que foi protestar(!) rezando o terço em latim em voz alta(!!) numa Missa(!!!) — perdendo totalmente de vista o lugar e os alvos apropriados de protestos, a relação filial do fiel para com a Mãe Igreja, o valor e o sentido do Santo Terço e, mais ainda, infinitamente mais ainda, da Santa Missa. Por toda parte há os que ao ver, por exemplo, que nestes tempos de coronga há Bispos que ilicitamente proíbem os fiéis de receber o Santíssimo diretamente na boca fazem questão de criar um “climão” diante dum padre que sabe que manda até quem não pode (ou o que não pode), e obedece quem tem juízo. Cria-se então aquele impasse medonho, com o pobre padre, que não tem culpa alguma no cartório, entre a cruz e a caldeirinha. No fim do “confronto” entre o fiel ajoelhado em pose de batalha, com a boca aberta e as mãos firmemente agarradas uma à outra, das duas uma: ou bem o padre cede e o sujeito sai todo pimpão do escândalo que fez, como se houvesse vencido a Hidra de Lerna da desobediência episcopal, ou bem o padre não cede e o sujeito posta nas redes sociais, na sua persona de Indignaldo da Silva, o vídeo que — claro! — foi feito por um amigo.

Daí a coisa vai pra pior: há quem se arrogue o direito de excomungar padres e Bispos, e mesmo quem decida pelo Espírito Santo quem é o Papa. Ou, o que consegue ser ainda pior, quem reconheça que o Papa Francisco é o Sumo Pontífice gloriosamente reinante e ao mesmo tempo o destrate, xingue, calunie, chame de “Bergoglio” como quem escarra, e por aí vai. Ao supostamente diminuir o Papa, os Bispos, os padres — a Igreja, em suma, que tem por nota ser hierárquica –, a pessoa iludidamente crê tornar-se superior a todos. Suas maldições e desprezo tomam a forma de “vou rezar por você”, e sua oração toma forma de ritual encenado como um fim em si mesmo. É uma “gangorra da santidade” ilusória, em que no enxovalhar o clero a pessoa crê-se engrandecida, convencida de ser nova Santa Catarina de Sena por, justamente, não entender que o amor e o respeito moviam a grande doutora, tomando a expressão epistolar de oposição a alguns erros pela essência de sua virtude. O sinal pelo sinalizado, a placa pelo fim da peregrinação. O imanente pelo transcendente. É ainda comum, com exatamente a mesma origem e funcionamento, a fixação na política eclesiástica, mormente a romana, com horas gastas a perscrutar as indicações papais de Bispos e membros de dicastérios, como se isso fizesse as vezes de luta contra os poderes e principados que não são deste mundo.

Tomada pelo mesmo delírio de base há também gente que eu não sei bem se se deu ao trabalho de ler Santa Teresona, mas que se põe a usar suas “moradas” como se fossem fases dum videogame, afirmando-se orgulhosamente nesta ou naquela morada. Ora — e é aqui que a gente entra na coisa mais séria depois de tanta enumeração de exemplos — as moradas da santa são parte de um caminho de ascensão espiritual que, por definição, quem está assim preso ao imanente (incluindo neste a própria definição das moradas) não está. Deus, repito com Santo Agostinho, não só está além mas pode ser-nos oculto até mesmo pela beleza de Suas criaturas.

Afinal:

A oração começa com o silêncio, não por o silêncio ser um elemento ritualístico, mas porque, como já cantou o poeta, “se eu quiser falar com Deus tenho que calar a voz”. Se deixamos nossa voz elevar-se mais e mais, mesmo que o que ela diga for lindo e certo, parecer santíssimo, e nos soar como a voz dos anjos, estamos na verdade abafando o próprio Deus que estaríamos na oração buscando. Paradoxalmente, por mais que “orar” venha do latim “or”, nada mais nada menos que “boca”, a oração não é feita primordialmente com a boca. Sim, eu sei, seria ótimo dizer isto à senhorinha que reza aos brados na adoração do Santíssimo, mas é melhor deixá-la na dela. Ela não vai entender logo de cara, e provavelmente ela é bem melhor que a gente, de qualquer modo.

O estreito caminho da união com Deus, o caminho da verdadeira abertura à graça, mostra-nos São João da Cruz no seu belo e clássico diagrama da Subida do Monte Carmelo que encima este texto, é composto de vários “nadas”: nada de bens do Céu (glória, segurança, gozos, consolos ou saber) e nada de bens da Terra (gosto, liberdade, honra, ciência ou descanso). De seu lado esquerdo fica o “caminho do espírito imperfeito”, que busca os bens do Céu e pelo mesmo fato de buscá-los os tem menos que se houvesse subido pelo caminho estreito, e acaba por subir menos. Do lado direito, o “caminho do espírito errado”, que busca os bens da Terra, e simplesmente não consegue subir.

Ora, toda prisão ao imanente é, de uma certa forma, uma busca que se limita ao mesmo imanente. Mesmo que ela tenha os bens do Céu como fim (e o que mais há por aí é gente que busca em Deus maravilhas, consolações e gozos ditos carismáticos, as “glórias” descritas acima neste mesmo texto, ou, ainda, lê relatos de supostos exorcismos exatamente como os espíritas lêem suas historietas de assombração, procurando coisas palpitantes e excitantes em que uma pretensa preternaturalidade ruidosa substitui a silenciosa supernaturalidade da graça), ela se afasta de Deus, justamente por não “calar a voz”, por, em última instância, perceber a vida religiosa (ou seja, de re-união com Deus de quem nos separamos já em Adão) como um toma-lá-dá-cá, como uma troca ou “negócio”, como apontou meu bom pároco.

Deus é Bom. Deus é o Bem. Se conseguimos ver nos bens criados os sinais de seu criador, se percebemos que eles são imagens refletidas, não Ele mesmo, então podemos conseguir fazer deles sinalizações que nos levam no reto caminho — o caminho de “nadas” — e agradecermos por a sinalização nos mostrar o quanto estamos longe do fim da senda estreita. Já se nos prendemos neles, se nos apaixonamos antes pela beleza criada que pelo criador da beleza, dificilmente conseguiremos sequer perceber o caminho que temos pela frente. E é então que nos escravizaremos a todo tipo de besteira, é então que armaremos nossa barraca num sub-Tabor de placa de beira de estrada. Temos que calar a voz, temos que comer o pão que o diabo amassou. Aquilo nos dá silêncio bastante para ouvir o sussurro do Espírito, e isto nos permite descobri-l’O na dor, que somamos às Suas, no pesar, na falta que nos fazem as criaturas de que fomos afastados, mostrando-nos a falta que nos deveria fazer o seu Criador.

E é então, no silêncio, na contemplação, na oração em que nada pedimos e nada sequer ofertamos, que a voz divina faz-Se ouvir, que o Verbo divino deixa-Se amar. E é aí que começa o longo, lento, e estreito caminho que conduz à Vida. Ele perdura e persiste ao longo de nossa vida por aqui, aliás; depois que entendemos que a sinalização é sinalização, temos enorme distância a caminhar até estarmos fora de toda distância, além de todo momento. Dizem que o Santo Padre João Paulo I uma vez, conversando com uma senhorinha que dizia que tinha muita devocção a Nossa Senhora disso, mas também “a traía” com Nossa Senhora daquilo, recomendou-lhe que se ativesse a Nossa Senhora das Panelas. Ele não estava sendo machista; estava apenas apontando que como a vidinha daquela senhora era entre as panelas, como aliás foi a da Santíssima Virgem aqui na terra, seria em meio às panelas que ela encontraria sua santificação. Um pouco como Santa Terezinha, que escreveu que ao êxtase preferia a humilhação cotidiana. Não é por a dor, ou a humilhação, ou o trabalho oculto de quem cuida das panelas terem algum tipo de valor salvífico por si sós, mas por ser este o mundo em que vivemos, repleto de sinalizações que nos levam para Deus, desde que tomemos o cuidado de percebê-las como elas são, não as tomando pelo Fim do caminho.

E é então, entregues no Amor e pelo Amor ao cuidado cotidiano, com o silêncio da alma deixando-Se ouvir a voz de Deus, que, quem sabe, poderemos até um dia chegarmos às ameias do Castelo Interior de Santa Teresa d’Ávila. Que Deus nos ajude e nos ilumine em cada momento desta difícil caminhada para fora do imanente.

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