As idades da mulher
Eu gosto muito de mulher. Sou louco por mulher. Adoro mulher.
Quando digo isso, as pessoas em geral pensam, provavelmente influenciadas pela hipersexualização da mídia, que estou falando de sexo, quando na verdade esta importante parte da vida tem pouco a ver com a minha afirmação. Eu gosto da companhia de mulheres; amo conversar e conviver com velhinhas; fico encantado ao ver as brincadeiras de menininhas; curto tremendamente ver os avanços de minhas alunas, e por aí vai. Sexo, nestes casos, ao menos no sentido de interesse em friccionar-me e trocar fluidos corporais com elas, não tem absolutamente nada a ver com o assunto.
Ele tem a ver, contudo, ainda que não diretamente em relação a mim hoje em dia, com o que mais me fascina na mulher: o fato de ela ser um ser humano concebido especialmente para a acolhida e para a vida — que nasce e deve nascer do sexo conjugal. Enquanto o homem é ativo, ataca, avança e conquista território, a mulher abraça, aconchega, protege e faz surgir a vida. Isto está presente em todos os momentos da vida desses seres tão fascinantes, independentemente de estarem em idade fértil, de serem já ou ainda sexualmente atrativas, ou mesmo de suas posições pessoais e escolhas de vida em relação a isso. Uma freirinha idosa, uma moça prestes a se casar e uma menininha que brinca de boneca são igualmente acolhedoras, são igualmente pessoas que lidam com o mundo por um modo radicalmente diverso do que nós, homens, usamos. As relações sexuais — que, evidentemente, são assunto de foro íntimo de cada mulher, que escolhe se e quando as terá — são apenas um espaço de manifestação de uma feminilidade que viceja em diversos outros aspectos.
Daí a minha profunda tristeza com algumas modas da nossa sociedade decadente. É hoje comum que moças se enfeiem propositadamente, que tentem negar sua própria capacidade de acolhimento, que confundam imitar os homens com progresso e “empoderamento”. Mulheres, graças ao bom Deus, não são homens. Como dizia Tom Jobim, “mulher é outro bicho”. Quando a sociedade obriga uma mulher, direta ou indiretamente, a comportar-se como um homem, sofre a mulher e sofre nela a feminilidade. Esta, todavia, sempre permanece. Debaixo da moça obesa, com os cabelos raspados de um lado e pintados de cores estranhas do outro, coberta de tatuagens e vestida de homem, há sempre uma menininha profundamente feminina. Debaixo do fenômeno oposto e complementar, e igualmente entristecedor, a mulher-alcatra, mais despida que vestida, com toneladas de maquiagem que visa transformá-la numa gostosona genérica, tentando desesperadamente interpretar uma persona sexualmente agressiva à moda masculina, há do mesmo modo uma doce velhinha em potência.
A feminilidade, assim, pertence a toda mulher, a todo ser humano do belo sexo, da concepção à morte natural. E eu, que gosto imensamente das mulheres, não consigo não reparar nela. Note-se, mais uma vez, que não se trata de atratividade sexual; uma mulher feiíssima, uma criança pequena, uma velhinha ou uma moça belíssima têm sempre esta mesma feminilidade que me atrai a atenção e fascina. Todas elas são bem-vindas à minha mesa, todas elas me fascinam de um modo que homem nenhum, por mais inteligente e divertido que seja, me interessaria, mesmo eu não tendo absolutamente desejo sexual por elas ou mesmo apesar de eu o ter, quando for o caso.
Sou casado; todas as mulheres do mundo, menos uma, me são proibidas. Mas o meu fascínio com a condição feminina, com a mente complexa e multifacetada e com as fugazes e fortíssimas emoções que perpassam como raios em noite de tempestade o horizonte do comportamento feminino, este perdura e não se confunde com atração sexual.
Dito isso, vejamos como são esses seres tão absolutamente fascinantes ao longo dos anos. As idades da mulher são várias; em todas ela é plenamente mulher, no sentido de ser impossível confundi-la com alguém do sexo oposto. Mas a plenitude do feminino ocorre, evidentemente, em função da magia de que só as mulheres são capazes, pela qual uma nova vida é gerada pelo seu acolhimento do homem, e esta nova vida esconde-se de primeiro no mais profundo de seu ventre, crescendo até poder sair e aninhar-se no seu colo. Para este momento e em função deste momento grande parte do que é exclusivamente feminino se orienta.
Quando nasce, uma menininha é de início extremamente semelhante ao menino, ao menos à primeira vista. Mas isso dura apenas até ela ganhar a capacidade de se mexer, de se orientar, de buscar o que lhe agrada. Uma menininha engatinha diversamente de seu irmãozinho. Minha filha, quando tinha meses ainda, estava uma vez comigo no hall de um hotel-fazenda. Eu conversava com parentes (era um encontro da família estendida), e ela, sentadinha nas suas fraldas, brincava no chão. Suas brincadeiras, mesmo assim minúscula, eram já brincadeiras de menina, com uma complexidade que as brincadeiras de menino não saberiam ter. Mas eis que o serzinho sentiu, de repente como sói acontecer com bebês, um sono profundo. Caiu dormindo ali mesmo, em cima do tapete de pele de boi onde brincava. Pedi licença, tomei-a nos braços e fui levá-la ao quarto para dormir na cama. No caminho, contudo, ela abriu os olhinhos. E viu uma moça que abria um daqueles panos pretos cheios de bijuterias prateadas e douradas que as mulheres vendem umas às outras. Ela fixou os olhos imediatamente naquilo, mesmo jamais tendo visto algo semelhante, mesmo sendo pequena demais para entender o que eram as bijuterias, e acompanhou com o olhos o brilho delas enquanto pôde. Ela já tinha aquele instinto de gralha que têm as mulheres, que são atraídas por coisas bonitinhas e brilhantes. Nenhum menino da mesma idade daria a menor pelota àquilo; para minha filhinha bebê, contudo, já se tratava de algo fascinante e irresistível.
E a criancinha cresce, e suas brincadeiras de menina vão se tornando ainda mais complexas. Minha filhinha era fascinada por coisinhas minúsculas desde a mais tenra idade; dar-lhe roupinhas e sapatinhos de poucos milímetros para suas bonequinhas era algo que indefectivelmente a faria feliz E, de uma forma ou outra, isso é um constante do feminino: a menininha, mulher em botão, já busca algo menor que ela para proteger, assim como busca algo maior que ela para ser protegida. Se ela vê uma criança que ela consiga carregar no colo, com poucos dedos a menos que ela de altura, seu instinto maternal já a faz querer levantá-la aos braços. E lá vai ela, pseudo-mãe de alguns poucos palmos de altura, arfando ao peso de outra criança quase da mesma idade e tamanho. E quando se juntam inventam rituais longuíssimos, em que se deliciam sentadas em círculo, falando baixo e mexendo bonequinhas, que tentam deixar confortáveis. Que acolhem.
Quando surgiram as bonecas Barbie houve muita preocupação por parte de pais, que temiam que aquela boneca tão evidentemente adulta e de certa forma sexualizada pudesse prejudicar o desenvolvimento das crianças. Que nada! As meninas tratam as Barbies como tratariam uma bruxinha de pano, no mais das vezes. Perigo maior é uma mãe que queira avançar o sinal e maquiar a filha pequena, por exemplo. Isso, confesso, é algo que sempre me entristece quando vejo. Afinal, faz parte do feminino infantil o rostinho limpo, com a pele lisa e perfeita da primeira infância, sem tintas e pós a esconder o rostinho da petiz.
Mas lá vão elas, miniaturas magricelas porém graciosas de mulheres, com seus rituais complexos, suas brincadeiras de acolhimento, sua curiosidade de gato, seus gestos um pouco desengonçados mas inegavelmente femininos, infância afora. As poses que fazem as menininhas, quando se presta atenção, são versões até mesmo exageradas das poses que numa mulher adulta seriam sensuais. Mas as crianças não têm noção disso, não buscam — graças a Deus — nenhuma “sensualidade”, e jogam o quadrilzinho reto prum lado enquanto apoiam o pulsinho dobrado no outro simplesmente porque são projetinhos de mulher, porque aquele gestual está inscrito em seus genes. Beijam e apertam filhotinhos de gato e cachorro porque Deus as fez de tal forma que o amor materno estivesse sempre ali, pronto para brotar, até mesmo numa idade em que, por óbvio, a maternidade ainda não lhes seria nem mesmo remotamente possível. Mas tudo as prepara para quando aquela hora chegar.
E quando elas vão para a escola, amoldam-se tão perfeitamente ao sistema de ensino que são os meninos que acabam sendo prejudicados pelas turmas mistas. São as meninas que dominam em todos os campos, pelo menos até a hora do recreio. Fazem, a seu modo, dos cadernos obras de arte, com muitas cores, sublinhados ondulados, letrinhas bem desenhadas. Dedicam-se ao estudo com uma seriedade tremenda, como é da natureza feminina. Afinal, já lembrava Chesterton, as mulheres são feitas para serem tudo para alguém — seu filho — e por isso precisam ter uma capacidade de concentração que homem algum jamais teria. Na infância, esta concentração está à vista em tudo: nas brincadeiras complicadas das menininhas, na aplicação ao estudo de que elas são capazes e os meninos não, no capricho que devotam às coisas que fazem.
E vão crescendo os serezinhos, e lentamente — ou num átimo, pelo ponto de vista dos pais — elas chegam ao triste fim da infância, a hora em que a borboleta, estranhamente, vira lagartixa ou perereca desengonçada. Chegando a puberdade, entram as meninas no que os franceses chamam de “l’âge bête”, a idade besta. Ficam desajeitadas, com braços que acabam muito além do que elas parecem capazes de coordenar e pernas compridas de cegonha. Ganham espinhas. Crescem desvairadamente, deixando para trás por muito os meninos da mesma sala de aula. Quando chegam os sinais mais fortes da transformação em mulher adulta, como o surgimento dos seios, as pobrezinhas ficam confusas, sem saber muito bem o que fazer com aquilo. Algumas chegam a ter problemas de coluna, por ganharem o hábito de jogar os ombros para frente e para dentro para escondê-los. Outras se esquecem de que eles existem e precisam ser ajudadas pelas mães a proteger-se.
Pois esta é a hora em que a mulher corre mais perigo. Na infância, há os tarados que atacam menininhas, como os há que atacam menininhos; ao chegar a puberdade, contudo, aumenta exponencialmente o número de “interessados” num corpo que está em curso de ganhar formas de mulher, mas que no mais das vezes abriga ainda a cabeça de uma menininha que, felizmente, não quer nada daquilo. Desde os meninos mais velhos até os velhos mais velhacos, é enorme o número de membros do sexo oposto que vêem numa menina-moça nada mais e nada menos que uma presa fácil.
A transformação de menina em mulher passa sempre por esta fase, dita da menina-moça. Nela o desajeitamente que chegou com a puberdade vai aos poucos se transformando magicamente. O bicho-pau vai-se tornando flor. A menina vai-se tornando, numa feitiçaria que seria diabólica se não fosse tão evidentemente divina, numa nova mulher. A menina-moça é ao mesmo tempo um e outro, menina e moça. Faço minhas as palavras infinitamente mais belas do grande mestre Machado de Assis:
Menina e Moça
Está naquela idade inquieta e duvidosa,
Que não é dia claro e é já o alvorecer;
Entreaberto botão, entrefechada rosa,
Um pouco de menina e um pouco de mulher.
Às vezes recatada, outras estouvadinha,
Casa no mesmo gesto a loucura e o pudor;
Tem coisas de criança e modos de mocinha,
Estuda o catecismo e lê versos de amor.
Outras vezes valsando, e seio lhe palpita,
De cansaço talvez, talvez de comoção.
Quando a boca vermelha os lábios abre e agita,
Não sei se pede um beijo ou faz uma oração.
Outras vezes beijando a boneca enfeitada,
Olha furtivamente o primo que sorri;
E se corre parece, à brisa enamorada,
Abrir asas de um anjo e tranças de uma huri.
Quando a sala atravessa, é raro que não lance
Os olhos para o espelho; e raro que ao deitar
Não leia, um quarto de hora, as folhas de um romance
Em que a dama conjugue o eterno verbo amar.
Tem na alcova em que dorme, e descansa de dia,
A cama da boneca ao pé do toucador;
Quando sonha, repete, em santa companhia,
Os livros do colégio e o nome de um doutor.
Alegra-se em ouvindo os compassos da orquestra;
E quando entra num baile, é já dama do tom;
Compensa-lhe a modista os enfados da mestra;
Tem respeito a Geslin, mas adora a Dazon.
Dos cuidados da vida o mais tristonho e acerbo
Para ela é o estudo, excetuando talvez
A lição de sintaxe em que combina o verbo
To love, mas sorrindo ao professor de inglês.
Quantas vezes, porém, fitando o olhar no espaço,
Parece acompanhar uma etérea visão;
Quantas cruzando ao seio o delicado braço
Comprime as pulsações do inquieto coração!
Ah! se nesse momento alucinado, fores
Cair-lhes aos pés, confiar-lhe uma esperança vã,
Hás de vê-la zombar dos teus tristes amores,
Rir da tua aventura e contá-la à mamã.
É que esta criatura, adorável, divina,
Nem se pode explicar, nem se pode entender:
Procura-se a mulher e encontra-se a menina,
Quer-se ver a menina e encontra-se a mulher!
É a menina-moça que ganha de repente como que uma cristalização do instinto materno e amoroso que todo ser humano do sexo feminino já tem desde o nascimento. Subitamente, elas passam a interessar-se ferozmente por quaisquer filhotinhos; os adesivos de seus cadernos têm personagens com proporções de bebê, com cabeças desproporcionalmente grandes em relação ao corpo; cantores ou atores bonitinhos passam a interessar-lhes, ou mesmo fascinar-lhes; todo o ritual, em suma, que leva finalmente à perpetuação da espécie humana chega de sopetão à vida delas em forma romântica e idealizada. Note-se que é muito diferente o interesse que tem a menina-moça em suas paixonites e o interesse realmente sexual ou amoroso da mulher mais velha, ou o interesse da menininha apaixonada pelo coleguinha de classe, poucos anos antes. A menina-moça vive um paroxismo de fantasia amorosa, uma idealização completa e profunda em que tudo é lido numa lente cor-de-rosa, em que o futuro, futuríssimo parceiro é forçosamente um príncipe num cavalo branco, a casa do- casal um castelo no alto de uma montanha, o bebê quase o Menino Jesus. É uma preparação, como que a forma que entra e preenche a mente da menina, preparando-a para a versão real daquilo que em pouco tempo há de vir — ou haveria, não fosse a horrenda mania de nossa sociedade de forçar a promiscuidade sexual precoce e retardar o matrimônio.
A transformação da borboleta-que-virou-lagarta em menina-moça é algo quase súbito. Numa hora se tem aquela coisinha desajeitada, noutra se tem este ser mágico cantado pelo grande Machado. E esta, de modo igualmente súbito, três ou quatro anos depois, se tanto, adentra a próxima fase da belíssima vida do belíssimo ser que é a mulher: a mocinha. A mocinha é a mulher recém-lançada, estreando, novinha em folha, que acaba de chegar. É a nubilidade em pessoa. Ela não é mais uma menina, sabe que não é mais uma menina, e brinca o tempo todo com os poderes que acaba de descobrir ter sobre os homens. Todos os homens, do garçom que a serve no restaurante ao professor, passando pelos pedreiros da obra diante da qual desfila e mesmo os pobres colegas de classe, sempre atrasados em relação a ela no seu desenvolvimento. Lembro-me de quando eu estava na escola, cercado de belas mocinhas e, com a mesma idade mas muito menos desenvolvido que elas, como sempre ocorre, as via namorando rapazes mais velhos, das turmas mais adiantadas ou mesmo universitários, enquanto as meninas mais novas eram, bom, novas demais para se interessarem por mim e por meus colegas.
É sobre as mocinhas que Schopenhauer, talvez o maior misógino da história da filosofia, escreveu:
Com as garotas, a Natureza teve em mente o que se chama, no sentido dramático, um ‘efeito de choque’, pois ela lhes dá por uns poucos anos uma riqueza de beleza e uma completude de charme às custas do resto de suas vidas, para que elas possam, durante estes anos, de tal forma acorrentar a fantasia de um homem que o façam correr a cuidar honradamente delas, de alguma maneira, pelo resto de suas vidas — coisa que não seria justificada se ele houvesse ao menos parado para pensar no assunto.
O tempo da mocinha, contudo, é mais longo que o tempo da menina-moça e, mais ainda, que o da “idade besta”. A mocinha passa a sê-lo quando se torna em mulherzinha pronta e perfeita, geralmente pelos quatorze ou quinze anos de idade, e deixa de sê-lo já pelo meio da terceira década de vida. São uns bons dez anos de mocinha, uns bons dez anos durante os quais ela tem tudo para, como escreveu o filósofo, “acorrentar a fantasia” dos homens. A mocinha — a condição de ser mocinha –, explicou ele bem, tem por objeto o casamento. Toda aquela beleza, todo aquele charme, toda aquela feminilidade absoluta que encanta a todos os homens serve como a teia de uma aranha para dominar mais completamente a sua presa. A mocinha, por definição, é núbil.
Na nossa sociedade decadente, contudo, prolifera a mania de ignorar o relógio biológico, e simplesmente deixar passar este período em vão. Aliás, a coisa é pior ainda: algumas fazem a besteira inominável de entregar-se a namoradinhos como se fossem casadas, engravidando deles e vendo-se na difícil condição de mãe solteira, enquanto outras simplesmente postergam o matrimônio “até acabar a faculdade”, ou besteira do gênero, e vão tentar arranjar marido, ou se já conseguiram um ter os filhos, quando é tarde demais. Afinal, outra coisa que Deus dá à mocinha, este ser mais admirável, é a capacidade física de correr atrás de criança enquanto cuida da casa, trabalha, estuda, e o que mais se fizer necessário. A idade correta, pela biologia humana, para começar a ter filhos é enquanto se é uma mocinha. E nada é mais belo que uma mocinha com seu filhinho no colo! A cena é tão maravilhosa que o próprio Deus quis dela participar. Quando nasceu o Menino Jesus, sua mãe admirável tinha quinze anos de idade. Era uma linda mocinha, a mais linda de todas as mocinhas. Até hoje a cantamos, até hoje todas as gerações a chamam de bendita e veneram a lindíssima imagem da mocinha e seu bebê.
As que cometem o outro erro também jogam fora o trunfo que a Natureza, nas palavras do filósofo, as deu. Conheço uma moça belíssima, que fez a besteira de engravidar de um moleque bandidinho quando tinha dezessete. Para piorar a situação, a pobre criança que nasceu da fugaz relação tem síndrome de Down. O que deveria ser um prêmio buscado por todos os homens da região — a esposa mais linda! — foi jogado fora. Uma responsabilidade imensa, que deveria ser partilhada por um casal — a criação da filha — recaiu por inteiro nas costas da pobre moça. Hoje, já chegando ao fim da terceira década de vida, ela está solteira e sem muita chance de conseguir um marido à altura de sua beleza já às portas de fanar. A razão é sua linda filhinha, já ela também hoje na adolescência, mas perpetuamente dependente da mãe. O nível de confiança que ela teria que ter num homem para dividir a casa e a cama com ele, confiando a ele o cuidado de uma menina que requer tratos especiais e que — como escreveu Morris West — recebeu de Deus “a graça da eterna inocência”, seria enorme. Por outro lado, poucos homens aceitariam casar-se com uma mulher que os faça partilhar tão grande responsabilidade, e menos ainda gostariam de ter em casa e no coração uma mulher que fosse forçada a manter relações no mínimo amigáveis com o mau elemento de quem ela engravidou quando mocinha. Isso é um crime social; é o roubo da maior fortuna que uma mulher tem ao longo da vida, que é o esplendor de sua beleza e de sua feminilidade, nos poucos anos que dura o estado de mocinha.
A mocinha, chegada ao fim de seu período de borboleta, transforma-se mais uma vez para outro período de cerca de dez anos. Tem-se então a mulher. Ou, antes, a Mulher, com “M” grande. É a mulher pronta, a mulher sábia, a mulher que sabe o que quer, como quer e quando quer. A mulher, tendo já passado o auge de sua fase reprodutiva — que ocorre quando é mocinha — está na condição de maior plenitude da feminilidade, no estágio em que Deus a prepara para ser mãe e esposa, para ser tudo para seus filhos e o porto seguro de seu marido. A mulher adulta porém ainda bela, a mulher conhecedora das coisas do mundo porém ainda atraente, a mulher dona de si e ainda fértil, esta é a feminilidade em seu estado mais bruto. Nada mais feminino que uma mulher de verdade, uma mulher já pronta. Enquanto a mocinha é certamente mais atraente do ponto de vista físico, sua cabecinha ainda é por demais borboleteante, muitas vezes levando a sério apenas aquilo que diz respeito, justamente, àquilo que é o objeto de tamanha beleza: as coisas do amor.
Já tendo passado este estágio, a aguçada inteligência de que são dotadas as mulheres pode debruçar-se sobre mais e mais coisas. Aliás, se tudo houver corrido bem, essa inteligência terá que o fazer: é a hora em que, lembramos, ela há de ter a nobre missão de preparar seus filhos para o mundo. E para isso ela precisa conhecer o mundo, e ela o conhece. Sua atenção levanta-se das névoas do foco monotemático que a mocinha tem nas coisas do coração para derramar-se, em panorama estendido, por toda a sociedade, pelo seu entorno físico, biológico e cultural. É ela, neste momento, que há de dar ao mundo suas maiores prendas. Desde a pensadora, da filósofa ou da cientista até a “simples” mãe e dona de casa, passando pela profissional de qualquer ramo e pelas que se dedicam às artes, é a mulher pronta, a mulher ao redor da idade cantada em prosa por Balzac, que dá ao mundo infinitamente mais que o que ela mesma, em qualquer outra idade, poderia dar. É interessante notar que, ao contrário do homem, que tende a dar o melhor de si mais velho, a mulher atinge seu auge nesta idade.
Depois desta idade, contudo, acaba o que sobrara da graça núbil com que Deus — ou a Natureza de Schopenhauer — a havia dotado, e que coexistira por alguns anos com a maturidade intelectual. A mulher vai fisicamente definhando, sua pele perde o viço e a elasticidade — por mais que os cremes prometam milagres, o avanço dos anos tem efeito inegável — e a mulher entra então em outra fase. Há aquelas que não sabem lidar com isso e, desesperadas pela perda daquilo que quando eram mocinhas dava sentido à própria vida, fantasiam-se de mocinhas e comportam-se segundo o triste estereótipo da “idade da loba”, entregando-se à promiscuidade ou ao adultério, numa versão decadente e patética dos doces rituais de sedução da mocinha que elas não são mais e jamais voltarão a ser.
Outras, contudo, sabem lidar com a maturidade mais completa e com a perda do “feitiço”, e adotam a dignidade que convém à sua nova condição de senhoras. Pois são as senhoras, as belas senhoras, as jovens matronas, que carregam consigo o estandarte da feminilidade nesta nova fase. Elas são sérias e, inegavelmente, belas. Não são mais aqueles foguetes que eram a mocinha e, em certa medida, a jovem mulher que já foram. Mas tampouco são elas já frágeis como eram ou como virão a ser mais tarde. As senhoras são mulheres prontas para dominar o mundo, e é isso que elas fazem: pelos poderes da mente, da dedicação, do esforço concentrado. As senhoras são as melhores administradoras, as melhores professoras, as melhores diretoras do que quer que seja. Elas entendem o que é a ordem; pode-se dizer que elas alinham-se perfeitamente na ordem de todas as coisas, na ratio divina de que falou São Tomás de Aquino. Com isso, elas proporcionam a toda a sociedade, inclusive e especialmente àqueles que elas acolhem mais completamente, como o esposo e os filhos, uma estrutura, um modo de viver e de ordenar a vida. São as senhoras que mantém a sociedade ordenada, não a polícia ou o legislativo.
E as senhoras, pouco a pouco, de modo quase imperceptível, lá pela sexta década de vida, vão-se transformando ainda em outro tipo de mulher, outro modo de viver a magia do feminino, que é a velhinha. Minha avó dizia que depois de uma certa idade a mulher tem que ter uns quilinhos a mais, pois se for muito magra é uma velhinha, enquanto a mais robusta seria uma senhora. Mas não é a isso que me refiro. Refiro-me, sim, à perda do senhorio que ela tinha quando era uma jovem matrona — a que me referi acima como “senhora” –, à fragilidade crescente que a impede de reger como regia, de agir como agia. A velhinha pode ser ainda a matriarca da família, e em geral o é, mas é como uma rainha da Inglaterra, que reina porém não governa: suas filhas aos poucos tomam o seu poder, fazendo-a ainda crer que manda, quando na verdade são elas que fazem tudo.
A velhinha passa ainda, normalmente, por outra mudança traumática, que é a perda do marido. É nesta idade que, em geral, falece o companheiro da vida inteira e ela se vê, de uma certa forma, “livre”. Depois de acolhê-lo por tanto tempo, sem ele há um buraco gigantesco em sua alma, mas ao mesmo tempo ela sente que pela primeira vez na vida, talvez desde os tempos de mocinha, ela pode tomar as decisões por si. Mas não é verdade. Ela não consegue mais tomá-las; quem as toma por ela são já suas filhas. E a “liberdade” que ela crê ter finalmente conquistado, às custas da dor da perda do companheiro de toda a vida, acaba sempre por ser perfeitamente ilusória. A liberdade verdadeira, muitas deles percebem claramente com a lucidez mental que lhes é característica, estará no Paraíso que as aguarda; é por isso que em qualquer igreja encontramos sempre velhinhas aos borbotões. Elas sabem traçar suas prioridades no ocaso da vida, como as traçaram por tantas décadas.
E é então que chega a morte, que já as encontra preparadas e apontadas para o Prêmio eterno que as aguarda, depois de uma vida de acolhimento e amor.
Não me seria possível não amar as mulheres; isto é uma longa declaração de amor.