Curiosas eleições
“Os eleitores não decidem nada. Decide quem conta os votos”, teria dito Stálin.
O sentido do termo democracia já variou tanto, que hoje é quase impossível defini-lo concisamente. Um dos sentidos mais comuns hoje em dia tem vagamente algo a ver com eleições; na sua variante internacional, também teria algo a ver com divisão tripartite de poderes. Tanto em âmbito global quanto no que é puramente nacional, todavia, o que hoje mais se vê mundo afora é um teatrinho, uma farsa que pouco deixa a desejar às antigas “repúblicas democráticas” comunistas, em que os candidatos do Partido único ganhavam sempre mais de 99% dos votos. Ou pelo menos tal era o resultado da contagem.
Neste século, curiosamente, o Brasil vem sendo regularmente submetido a uma versão atrasada em dois anos da farsa em curso nos EUA. Tudo parece já estar pronto para a encenação tupiniquim da peça de grande sucesso na Matriz em 2020. Lá então, como aqui hoje, os donos do poder estavam furibundos por terem sido surpreendidos pela eleição dum sujeito que não faz parte do esquema. Lá então, como aqui, a burocracia dominada pelos donos do poder passou quatro anos sabotando a presidência. Lá, como aqui, a grande mídia a serviço dos poderosos papagaiou ininterruptamente ao longo de todo o mandato acusações absurdas de toda espécie, tentando arranjar alguma que colasse. E finalmente lá, como aqui, tudo foi feito para que o resultado das eleições saísse de acordo com o desejado pelos donos do poder. Que também são os donos da contagem de votos. Lá como aqui.
Lá, praticamente sem ter feito campanha, foram contados para Biden tantos votos que foi finalmente batido o recorde de votação até então nas mãos de seu mentor Obama. Como lá a votação é mais ou menos auditável, por ser feita em papel, sua apuração leva tempo. Durante esse tempo coisas estranhíssimas aconteceram. Denúncias seriíssimas foram levadas a tribunais, inclusive o Supremo local, mas nenhuma delas chegou a ser examinada; ninguém queria aquela batata quente. Auditorias externas, feitas de lá para cá, registraram que havia fundamentação em algumas das denúncias. Mas agora é tarde; Inês é morta, e o pessoal que escreve os discursos de Biden está ocupadíssimo tentando deflagrar a Terceira Guerra Mundial.
Aqui, contudo, graças à mágica das urnas eletrônicas, nós temos essa inovação tecnológica absoluta, digna de vários Prêmios Nobel. Aquilo que os países ricos estão tentando criar com a computação quântica aqui já é realidade. Aqui, e só aqui, existem dados digitais à prova de manipulação mal-intencionada. Na prática isso significa que não há como haver aqui o tipo de coisa que houve nos EUA, pela simples razão de que as estranhezas por lá no mais das vezes consistiam em manipulações da contagem dos votos de papel. Votos trumpistas acima do desejado causavam a ação do que o próprio candidato depois vitorioso chamou de “a maior máquina de fraude eleitoral da história”. Sessões eleitorais eram fechadas por razões aleatórias, sendo expulsos os fiscais partidários, e quando eram reabertas dezenas de milhares de novos votos teriam sido inseridos no sistema, tirando de Trump a liderança; registradores de voto teriam registrado inúmeras vezes os mesmos votos, e por aí vai.
Tudo isso aqui corresponderia àqueles poucos milissegundos em que a Urna Infalível registra num pendrive os dados em seu interior, que — claro — a Suprema e Tremenda Feitiçaria pós-quântica tupiniquim garante serem exatamente os digitados pelos eleitores. Esses pendrives, protegidos que são pelas forças cósmicas do Bem®, viajam então de barco, carro e avião até computadores centrais (novamente, graças às camadas de feitiços e proteções supremamente miraculosas, sem sofrerem alteração ou substituição) e têm seus dados honestissimamente acrescentados ao cômputo geral. Deixando de lado o tempo de votação propriamente dito e o tempo de viagem e conexão ao sistema dos famosos pendrives invioláveis (sério, só isso já merecia vários outros Prêmios Nobel. Que descoberta fantástica da suprema ciência brasileira!), o resultado no Brasil é definido em questão de segundos. Por um algoritmo, num computador. Algoritmo magicamente inviolável, computador legítima e supremamente inviolável.
O fato é que dada a velocidade com que são computados os dados dos pendrives inexpugnáveis impede que em nosso supremamente confiável Sistema Tupiniquim de Feitiçaria sejam feitas gracinhas como as que parecem ter dado a vitória a Biden nas eleições presidenciais americanas passadas. Não é possível corrigir “em tempo real”, por assim dizer, uma avalanche de votos para o inimigo; qualquer modificação na tabulação dependeria da ação de um algoritmo pré-programado. Não é de se estranhar que os militares — cada vez mais decididos a exercer a função que lhes atribui o Dr. Gandra de Poder Moderador — tenham querido examinar os registros das duas eleições presidenciais anteriores. Na de Dilma versus Aécio, a oposição consentida (cujos votos foram devidos muito mais ao fato de o Aécio não ser a Dilma que por qualquer outra razão) perdeu por um nariz. Alguma plausibilidade foi preservada. Na seguinte um poste-do-Lula que ainda conseguira a proeza de tornar o trânsito de SP ainda pior foi para um “desempate” em segundo turno contra o bolsointruso, que acabou ganhando por coisa de dez milhões de votos num eleitorado de quase 150 milhões de cidadãos; diferença quase igual ao número baixíssimo de nulos e brancos. Um tanto ou quanto mais estranho. Quase tão estranho quanto ter sido negado aos militares o acesso aos dados solicitados. Quem vê poderia até pensar — não fosse nosso Judiciário composto apenas de impolutos varões de Plutarco — haver algo a esconder.
Hoje, claro, é impossível — graças à supremacia da feitiçaria brasuca — que haja manipulação na contagem digital de votos. Em outros tempos, porém, já houve. A forma como foi feita a manipulação no Escândalo da ProConsult, no distante Século XX, é um bom exemplo de como isso ocorre em contagem eletrônica: a contagem não era uma simples soma dos votos para cada lado, mas uma equação mais complexa. Nela votos nulos e em branco (ou talvez até votos efetivamente dados a candidatos indesejáveis) eram desviados por um tal diferencial Delta para o lado preferido pelo pessoal que desenvolveu o sistema de contagem.
Ora, quem bola um sistema desses busca um resultado plausível, como a vitória apertada da Comedianta. Para isso é preciso que se tenha alguma noção, ainda que básica, da proporção de votos reais para cada um dos lados. Afinal, esse seria o dado a modificar. Uma modificação que partisse de uma previsão subestimada de votos realmente dados ao inimigo poderia apenas levar a um segundo turno alguém que seria eleito no primeiro, ou mesmo permitir que ele fosse eleito num segundo turno, ainda que com uma votação menos estrondosa que a que lhe teria sido dada pelos eleitores. Coisa impensável, claro. Ainda bem que aqui isso não acontece!
O fato é que estamos numa situação em que as coisas parecem estar se encaminhando para, mais uma vez, vermos repetida como farsa a tragédia americana de dois anos atrás. São outros, porém, os atores e, mais ainda, é outra a cultura política. Biden não concorreu como pessoa, sim como símbolo de todo o projeto da esquerda americana, personificado não nele mas em Obama. O próprio Trump, por mais espaventosa a sua figura, estava ali como representante dum “sonho americano” defendido pela direita de lá. Foi uma eleição ideológica, não pessoal, como sói ser naquela cultura política, representando uma divisão ideológica binária realmente existente por lá.
Já aqui temos o oposto, e é isso que os tietes tanto de Bolsonaro quanto de Lula têm dificuldade para entender. Lula foi eleito quando conseguiu esconder com algum sucesso sua ideologia e criar a persona do Lulinha Paz e Amor. Bolsonaro, por outro lado, foi eleito por ser “uma pessoa normal” — que, sempre digo, poderia ser substituída por um taxista aleatório sem diferença real alguma. O esquerdismo do Lula é politicamente um fardo, uma desvantagem séria. Já o direitismo de Bolsonaro decorre de sua suposta normalidade, e não é percebido ideologicamente pelo eleitorado. Para o eleitor, a questão maior da eleição presidencial é completamente outra.
Ninguém — ouso dizer que nem mesmo os diretamente envolvidos, ou principalmente estes — acredita que o fato de o Lula ter sido tirado da cadeia demonstre sua inocência ou honestidade. Por outro lado, são poucos, pouquíssimos!, os que veem em Bolsonaro uma pessoa preparada e capaz. Até mesmo pela quantidade de besteirinhas suas que a mídia amplificou e tentou transformar em escândalos ao longo do mandato, suas limitações estão à vista de todos. Aliás, para ele é muito bom que estejam: a soma de todas as acusações que lhe são feitas é muito menor que o objeto das condenações que levaram o Lula à cadeia. E todos têm plena consciência de que aquilo era uma pedrinha de gelo na ponta dum iceberg muitíssimo maior.
E ainda temos aqui outra diferença fundamental: o Poder Moderador militar, que se vê como distante tanto do Supremo quanto do próprio Bolsonaro. Não é como a esquerda os vê, mas acaba sendo algo bem mais real que as fantasias ideológicas tanto dela quanto de muitos bolsonaristas mais enfezadinhos. Afinal, o simples fato de Bolsonaro ter saído das Forças Armadas mero capitão já mostra que ele não é o tipo por eles desejado para posições de mando superior. Por outro lado, tendo sido formado nas Agulhas Negras, ele provavelmente tem mais pontos ideológicos em comum com o generalato que qualquer outro candidato.
Já o Lula, bom, seus desgovernos diretos e indiretos deixaram claro que não é apenas efetivamente chegado a uma ditadurazinha comunista, como ainda por cima não é exatamente o maior respeitador do erário. Nunca se roubou tanto na história deste país, e olha que a concorrência era braba. A seu favor, no entanto, ele tem o apoio dos grandes capitalistas e globalistas em geral, logo reservas pecuniárias essencialmente infinitas, além de tempo maior de propaganda “gratuita”. E, claro, a simpatia-quase-amor da turminha que o tirou da cadeia e vai contar os votos. Na teoria, em termos de votos dados, acho bastante improvável que ele alcance o que costumava ser o seu teto de um terço do eleitorado, até por ter tido tempo e ocasião bastantes para ganhar a inimizade de todas as facções esquerdistas que se tenham considerado preteridas enquanto ele estava por cima da carne-seca. Já na prática, em termos de votos contados, o objetivo provavelmente há de ser algo semelhante ao das “pesquisas de opinião” mais próximas às eleições. Elas começaram com vitórias avassaladoras dele, para poder mostrá-lo modestamente perdendo terreno e finalmente “eleito” por margem pequena. O sucesso da empreitada de contagem, entretanto, por ter que ser programado de antemão, depende de que seus programadores saibam mais ou menos de que ponto começar, ou seja, tenham como ter uma noção mais ou menos realista de qual seria o cômputo original a alterar.
(Se fosse possível alterar algo, claro! Como a Sagaz Tecnologia Fanfarrã brasileira sobeja e supremamente impede que isso aconteça, estamos aqui tratando de, digamos, um exercício de pensamento; uma atividade acadêmica.)
Em outras palavras, a obtenção algorítmica dum resultado ao mesmo tempo plausível e agradável aos donos do poder depende de acesso a informações reais, fora da bolha que habitam. E, mais ainda, os generais estão tremendamente desconfiados, e vão querer examinar a fundo o pouco que se lhes dê de informação. Se for anunciado resultado equivalente ao da montagem americana da mesma obra dramática, é possível, ou mesmo provável, que o Poder Moderador gandriano queira entrar em ação.
Não creio, contudo, que o outro candidato a Poder Moderador, que vem se revelando nada moderado e completamente parcial, aceite que os resultados de sua contagem sejam contestados pelos militares. E aí, então? Um cabo e dois soldados? Uma crise institucional em câmera lenta? Uma grita internacional, bancada pelo grande capitalismo, a favor do Proletário-Padrão no Poder? Não há como saber.
O que se pode perceber claramente é que tudo parece estar se encaminhando para que a versão brasileira do último musical americano seja um fracasso de público e de crítica. Qualquer que seja o resultado da contagem, um dos dois candidatos a Poder Moderador vai se abespinhar e tentar crescer para cima do outro. Aqui não tem como ser possível o processo em curso nos EUA, em que — como aliás previ numa coluna minha — a consolidação do poder nas mãos de seus “donos de sempre” praticamente acabou com a possibilidade de oposição real. Lá a população está dividida ideologicamente; aqui temos de um lado todo o discurso midiático, acadêmico e político dos donos do poder, e do outro uma população que cada vez mais se percebe nas mãos de alucinados, e deseja apenas normalidade — que o atual bolsopresidente parece poder encarnar.
O fato é que as pontas-de-lança do “progressismo” bancado pelo grande capital avançaram demais, depressa demais. Mostraram a mão; quem sabe da existência e entende o papel constitucional teórico do Supremo sabe que ele se tornou um ator político, e só. Independentemente do resultado da contagem de votos teremos uma crise institucional grave. Ganhando a esquerda a contagem vem a crise — mesmo se estranhamente não houver reação militar — pelo simples fato de não ser possível aqui botar panos quentes e engaiolar os apoiadores mais saidinhos do presidente defenestrado para disfarçar a consolidação de poder, como nos EUA. Sendo reeleito o bolsopresidente vem a crise, porque o Executivo Dois (dito “Judiciário” antes de mudar de ramo) não tem mais como se fingir de isento e vai ter que ser confrontado.
E seja o que Deus quiser; afinal, o voto d’Ele ninguém conta.