O Estado de Israel

Em geopolítica não há santos.

Carlos Ramalhete
19 min readAug 4, 2020

Muita gente me pergunta por que eu não falo quase nada do Estado de Israel, mesmo sendo a política americana (e, por extensão, a paz mundial, sempre ameaçada por esta) praticamente uma continuação da política israelense. A razão é simples: a existência do Estado de Israel (ou, melhor dizendo, de um lugar próprio, para onde os judeus possam fugir quando perseguidos alhures, como estão sendo agora na França, devido ao crescimento do Islã por lá) é absoluta e completamente necessária. Eu realmente não gosto de dar argumentos para gente que vai usá-los para negar ao Estado de Israel o direito de existir enquanto estado judeu, e é exatamente isso que acontece quando se lhes aponta os problemas de tal estado: eles logo viram “razão” para negar-lhe criminosamente até mesmo o direito de existir. Num momento em que usar um solidéu na França pode valer ser morto na rua, é uma piada macabra querer negar este direito. Este estado é necessário, e pronto, acabou-se.

Mas, porém, todavia, no entanto, entretanto, foram feitas várias enormes besteiras quando, pouco após a Segunda Guerra Mundial, logo após a extensão da barbárie nazista ter sido revelada ao mundo, a ONU determinou que no protetorado inglês da Palestina (tomado dos turcos ao fim da Segunda Guerra) fossem feitos dois estados paralelos, um para os judeus e o outro para a população árabe da região. O maior destes erros crassos foi, justamente, que o Estado judeu fosse feito ali; mais ainda, que seu território terminasse a uma distância tantalizante de Jerusalém (que ficaria sob controle internacional).

A impressão que se tem é que o processo da ONU, culminado no plano de partição do antigo Mandato Britânico da Palestina, promulgado em 1947 e valendo a partir do ano seguinte, foi feito por gente que não sabia que todo ano os judeus religiosos reiteram o desejo de estar “no ano que vem em Jerusalém” há quase dois mil anos. E, mais ainda, por gente que não conhecia a história das conturbadíssimas relações entre judeus e árabes na Palestina britânica, que provavelmente eram na ocasião as piores relações entre estes grupos em todo o mundo. Desde a Declaração Balfour, em 1917, em que o governo inglês havia manifestado a sua intenção de dar um lar aos judeus bem ali na Palestina (que ainda pertencia aos otomanos, mas lhes seria tomada pelos ingleses em seguida, no contexto da Primeira Guerra Mundial), os ânimos só haviam feito acirrar-se.

O movimento sionista, surgido na primeira metade do Século XX, basicamente buscava primeiro um lar nacional para os judeus, e só secundariamente passou a buscar seu estabelecimento no lugar onde ele acabou sendo ocorrendo. Foram aventadas inúmeras possibilidades de localização para esse estado. De Madagascar ao Alasca, passando por Uganda, o que não faltaram foram propostas. E qualquer uma delas, absolutamente qualquer uma, até mesmo se fosse o caso de criá-lo na China ou em Minas Gerais, seria melhor que onde ele acabou sendo feito. Isto, por uma razão simples: é inegável a necessidade de um refúgio para os judeus, que sempre foram e sempre serão perseguidos por gente que não consegue reduzir o judeu a uma categoria “fácil de entender” — não é “raça”, porque existem judeus de todas as cores; não é “religião”, porque existem quase tantos judaísmos quanto há judeus, ou mesmo mais; não é “nação”, porque há diferenças muito maiores entre, digamos, judeus asquenazitas e sefaraditas que entre, por exemplo, franceses e alemães, que sempre andaram às turras; e por aí vai.

Por outro lado, aquela terra, a que os romanos chamaram por birra “Palestina” (“terra dos filisteus”), foi local histórico de vários reinos hebreus que nada tinham a ver com um Estado moderno, e estabelecer o estado judeu lá inevitavelmente levaria à confusão de alhos com bugalhos, fazendo de uma partição moderna de território feita por uma entidade moderna semente do ressurgimento do que muitos judeus religiosos percebem como uma promessa divina de um território dezenas de vezes mais vasto, avançando até o meio do atual Iraque. E ainda há Jerusalém, cidade sagrada para judeus e cristãos e apropriada pelos muçulmanos, no seu afã de dar legitimidade à nova religião ligando-a às já existentes, com uma fábula nonsense segundo a qual Maomé um belo dia teria voado de Meca para lá, montado num potrinho alado com cara de gente, e de lá pulado para o céu. Ela, por sua vez, sempre foi e sempre será objeto de enormes expectativas escatológicas. E nada pior que expectativas escatológicas quando se está tentando estabelecer uma área de refúgio pacífica. Ah, aliás, há sim algo pior: unir estas expectativas religiosas a uma ação ultranacionalista secular empregando métodos terroristas para aterrorizar os nativos e tomar-lhes as terras onde nasceram e cresceram, e onde seus antepassados sempre viveram.

Ah, e pra coisa feder mais ainda e garantir que a paz por aquelas bandas só surja quando da Parusia, aparentemente ninguém teve o bom-senso mínimo de olhar ao redor no mapa. Se o houvessem feito, teriam visto que o novo estado judeu estava sendo plantado em terra que os muçulmanos veem como sua desde que os reinos cruzados foram eliminados há quase um milênio. Como tanto o Talmude quanto o Corão proíbem devolver a membros de outras religiões terras que já tenham sido apropriadas por seus seguidores, nenhum dos lados poderia ceder. Ainda por cima, para dificultar ainda mais a situação dos judeus — que, lembro, acabavam de ter seis milhões dos seus assassinados no Holocausto nazista –, nem se todos os judeus do mundo fossem apertados naquele espacinho eles chegariam perto de alcançar em número os muçulmanos da vastíssima área que o Islã tomou à Cristandade no Oriente Médio e no Norte da África.

Em suma: a guerra era certa, assim que soasse o instante em que o novo estado judeu se declarasse existente. E foi o que aconteceu. Do mesmo modo, o avanço judeu rumo a Jerusalém era praticamente certo e garantido. Os judeus só não tentariam chegar a Jerusalém (antiga capital do reino hebreu da Judeia, de onde veio o próprio termo “judeu”!) e torná-la sua capital se fossem fisicamente impedidos de fazê-lo. E mesmo assim muitos morreriam tentando.

É engraçado como a nova direita brasileira gosta tanto de fazer memes com cruzados que sonham em libertar Jerusalém, mas frequentemente apoia incondicionalmente o Estado de Israel. Afinal, é exatamente isto — libertar Jerusalém — que os israelenses consideram ter feito. Primeiro, na guerra da independência, em 1948, conquistaram a metade ocidental, logo na guerra com que conseguiram estabelecer-se como Estado independente. Depois, na Guerra dos Seis Dias, em 1967, quase vinte anos depois, tomaram a oriental, incluindo o local onde ficava o Segundo Templo, de que hoje só sobra um muro de sustentação, e seu entorno, a Cidade Velha, incluindo o bairro judeu, ocupado pelos jordanianos na guerra de 1948. Na mesma ocasião também conquistaram a parte baixa da Judeia, a Samaria e a Galileia.

Os Reinos cruzados, aliás, perduraram por cerca de cem anos, sobrevida que o Estado de Israel ainda não alcançou. O problema básico de ambos era o mesmo: a imensa quantidade de inimigos muçulmanos ao redor, que fazem com que tanto os estados cruzados quanto o atual estado judeu vejam-se em permanente desvantagem numérica. A tecnologia moderna, todavia, diminui sensivelmente esta desigualdade numérica. Não só o estado judeu dispõe de farto arsenal nuclear, como há a possibilidade de ataques aéreos, em que um único piloto pode dizimar um batalhão sozinho. Além disso, o fortíssimo apoio financeiro americano, nestes tempos de globalização, pode ser posto em uso de maneira praticamente imediata, ao contrário do que ocorria com o apoio europeu aos reinos cruzados. Persiste, porém, o fato de que cada soldado israelense perdido pesa infinitamente mais para a sua sociedade que um soldado árabe para o povo de que vem, não apenas objetiva, mas também subjetivamente.

A questão religiosa, a que voltaremos mais tarde, todavia, apesar de trazer em si as sementes para uma hecatombe de alcance mundial, empalidece diante da questão nacional e territorial. Durante o tempo do Mandato Britânico, muitos dos líderes do futuro estado judeu dedicaram-se ao terrorismo mais bárbaro. Era gente, aliás, completamente secular, sem nenhuma prática religiosa, vendo-se como judeu por nacionalidade, não religião. A leitura de uma enumeração dos atentados, recolhidos de jornais da época e publicados em livro por Thomas Suárez, acaba cansando de tão repetitiva: um grupo de judeus entrava numa delegacia de polícia e deixava lá uma bomba que explodia matando vários policiais ingleses, e o Irgun (movimento terrorista) ligava para assumir a responsabilidade; todas as lojas pertencentes a árabes num mercado municipal eram incendiadas, sendo as testemunhas metralhadas, e um telefonema do Lehi (outro) assumia o ataque; uma ponte era destruída por explosivos e a Haganá (embrião da futura Força de Defesa de Israel, o exército do Estado de Israel, mas então apenas mais um grupo terrorista) mandava avisar terem sido eles. O mais conhecido dentre os ataques foi a destruição de toda uma ala do Hotel Rei Davi, no centro de Jerusalém, para destruir alguns documentos confiscados pelos britânicos, comprovando a participação da Haganá em alguns ataques terroristas e dando detalhes de sua organização e nomes de membros. Para destruir os papeis, nada mais eficiente que explodir toda a ala do hotel — ou pelo menos foi o que pensaram os terroristas do Irgun, chefiados por Menachem Begin, futuro Primeiro-Ministro de Israel. Sem aviso algum, bombas escondidas no subsolo por terroristas judeus disfarçados de árabes explodiram em plena segunda-feira, matando mais de noventa pessoas e ferindo quase cinquenta outras.

Evidentemente, isto em nada ajudava a conquistar apoio árabe para a causa judaica, já que parecia já evidente aos habitantes árabes da região (tanto muçulmanos quanto cristãos) que quando o estado judeu fosse instalado, eles não estariam na melhor das situações. Para tornar mais paradoxal e triste a situação, convém lembrar que os árabes da região são, em sua quase totalidade, descendentes dos judeus do tempo do Segundo Templo. Em sua maioria eles haviam adotado a religião cristã como continuação do judaísmo após a destruição final do Templo (no ano 70 d.C.). Após a invasão muçulmana capitaneada por Umar ibn al-Khattab em 638 d.C., grande parcela deles submeteu-se ao Islã para se evadir à condição de dhimmi — no Islã, um judeu ou cristão que vive em território muçulmano, tendo que pagar impostos extra e sendo submetido a diversas restrições humilhantes. Por outro lado, os judeus que sobreviveram ao Holocausto, bem como os pertencentes aos grupos terroristas que já agiam na região antes e durante Segunda Guerra, são descendentes de povos eslavos e turcos que adotaram a religião judaica durante o Medievo, basicamente para que pudessem fazer comércio com muçulmanos e cristãos sem sofrerem as restrições por ambos impostas a pagãos. Não que Hitler ou os atacantes dos judeus franceses de hoje jamais tenham manifestado qualquer interesse por estas curiosidades histórico-genéticas, claro.

E fazia sentido o temor dos palestinos árabes: assim que o estado judeu foi instalado, efetivamente, deu-se o que hoje seus descendentes chamam de “Nakba”, ou “A Catástrofe”. Na verdade, o processo começou um pouco antes; quando o plano de partição foi tornado público, os ingleses perderam quase completamente o controle da situação. Os países árabes ao redor proclamaram sua intenção de varrer os judeus para o mar — aproveitando o ensejo, claro, para apropriar-se também das terras que na partilha deveriam formar um Estado árabe independente para os nativos árabes. Os judeus, por seu lado, reafirmaram sua decisão de não apenas manter o território dado pela ONU, mas também retomar Jerusalém. Aliás, foi exatamente por Jerusalém não estar no território determinado pela ONU para o estado judeu que infelizmente não foram aprovados por seus fundadores os nomes “Sião” e “Judeia” para o novo Estado: Sião é um monte em Jerusalém, e a Judeia é a área onde fica esta cidade. É inclusive curioso observar como não há menção alguma à Divindade no texto fundador do Estado de Israel; há apenas menção a uma ambígua e polissêmica “Rocha de Israel”.

A situação de guerra aberta que se abriu assim que o plano da partição veio a público piorou exponencialmente quando um grupo do Irgun, num contexto de confrontos constantes de baixa intensidade entre milícias árabes e judias, invadiu a cidadezinha de Deir Yassin (que, inclusive, se havia negado a fornecer soldados para as milícias árabes) e basicamente chacinou a população, homens, mulheres e crianças. O pânico tomou conta de grande parte da população árabe da futura área judaica, e mais de cem mil deles resolveram fugir para leste, para a Samaria e Galileia, que seriam pela partição território árabe, deixando todos os bens para trás. Revoltados com a notícia do massacre e também movidos pelo desejo de tomar para si tanto as terras do futuro estado judeu quanto as que a ONU mandara dar aos árabes nativos, os estados árabes da região avançaram rumo ao mar assim que os britânicos se retiraram. Os judeus, por seu lado, tentavam fazer o mesmo do outro lado, avançando da orla para Jerusalém, no alto das montanhas da Judeia.

Vale notar que os britânicos tinham excelentes relações com os árabes desde Lawrence da Arábia, tendo inclusive sido os responsáveis pela criação de vários países e instalação de várias famílias reais no Oriente Médio poucas décadas antes. Já com os judeus da região, suas relações eram péssimas. Assim, os representantes de Sua Majestade, a Rainha da Inglaterra, atrapalharam no que puderam a migração judaica para a Terra Santa até o momento em que, entrando em vigor a determinação da ONU, já não mais lhes competia fazer o que fosse. Navios com refugiados judeus europeus, muitos deles sobreviventes dos campos de extermínio nazistas, ficaram por até três anos ao largo da costa do futuro Estado de Israel, proibidos de desembarcar pelos britânicos. A ilha de Chipre abrigava em 1948 enorme quantidade de refugiados, para lá conduzidos pela Marinha Real inglesa.

Destarte, quando ao mesmo tempo o Estado de Israel surgiu e os ingleses saíram, enquanto as tropas árabes invadiam o território dado aos nativos palestinos pela ONU, a caminho dos territórios dados aos judeus, para “varrê-los para o mar”, milhares de imigrantes desembarcavam de navios. Ao pisar em terra, recebiam uma arma velha, mas bem tratada, aprendiam suas primeiras palavras em hebraico (“esquerda”, “direita”, “recuar”, “avançar”, “atirar” e “cessar fogo”), e eram imediatamente levados ao campo de batalha. Preparando-se para a guerra inevitável, os movimentos sionistas haviam aproveitado a farta oferta de armas no mercado negro após a Segunda Guerra, tendo até mesmo roubado uma esquadrilha inteira de aviões de caça ingleses sob o pretexto de quererem gravar um filme de guerra!

Em tal situação, é claro que a vida da população pacífica, mormente a árabe, não tinha como continuar na modorra de sempre. A guerra é algo via de regra travado por rapazes, mas que tem nas mulheres, crianças e idosos as suas maiores vítimas. A recém-formada Força de Defesa de Israel (IDF), aliada às várias milícias judias preexistentes que só aos poucos foram se integrando a ela, via com enorme desconfiança a presença de não-judeus no que percebiam como “seu” território. Afinal, naquele momento ele ao mesmo tempo nascia e era atacado violentamente por gente indistinguível dos habitantes das aldeias árabes tradicionais da região, especialmente para os recém-chegados da Europa. E estas aldeias foram sendo esvaziadas, parte pela força, parte pelo pavor que tomava os habitantes de serem expulsos pela força e mortos no processo. O resultado é que aos cento e tantos mil que já haviam fugido depois de espalhar-se a notícia de Deir Yassin somaram-se outros setecentos ou oitocentos mil. A maioria deles carregou consigo a chave de casa, na esperança de voltar quando cessassem as hostilidades. Que jamais cessaram. Os que eram expulsos pela força perdiam logo esta esperança, ao ver tratores demolindo as casas que acabaram de deixar, no mais das vezes com pouco mais que a roupa do corpo.

Nos países árabes, do Marrocos ao Oriente Médio, o processo oposto ocorria: os judeus, que haviam convivido amigavelmente com os muçulmanos por séculos, ainda que na condição de dhimmi, eram agredidos nas ruas e em casa, e muitas vezes expulsos do país. Evidentemente, o rumo mais natural a tomar seria o do novo estado judeu. O próprio movimento sionista, inclusive, propositadamente não procurava ajudá-los, e até os atrapalhava, na migração para as Américas ou outros lugares em que poderiam viver em paz. Queriam os sionistas que todos os judeus expulsos de seus países natais fossem para o novo estado judeu, e para isso usavam toda a influência diplomática e econômica que tinham. O lugar de todo e qualquer judeu, para os sionistas, era ali, naquela guerra, mesmo que a pessoa jamais houvesse sonhado em ir para lá, não tivesse interesse algum em fazê-lo e preferisse ir para algum lugar onde pudesse continuar a viver em paz. É até compreensível, no contexto, mas para muita gente há de ter sido desesperador ver-se impedido de fugir duma guerra que não consideravam sua.

O resultado do processo foi o surgimento de uma vasta população de refugiados palestinos nos territórios de todos os países árabes ao redor. Para fazer uso político de sua desgraça, todavia, os países que os receberam os mantiveram, e mantém até hoje seus filhos, netos e bisnetos, em campos de refugiados — a esta altura cidades, ou, melhor dizendo, vastas favelas. Negam-lhes o direito à cidadania do país em que nasceram, para usá-los como bucha de canhão na guerra contra o Estado de Israel. Todos os refugiados, de todas as guerras, sempre acabam por misturar-se à população do país de asilo e em duas gerações mal se lembram da desgraça que acometeu seus ancestrais. Já os palestinos são a única população de refugiados que aumenta em vez de diminuir, por serem também considerados refugiados todos os descendentes dos que foram originalmente expulsos do território hoje israelense. Quando se pensa que os países que os acolheram falam a mesma língua, têm uma cultura relativamente semelhante, o mesmo clima, e por aí vai, a recusa de absorvê-los só se explica por razões políticas, pela facilidade de manter e dirigir uma população de gente criada no ódio não apenas ao estado judeu, mas a todos os judeus. É nestes campos que os movimentos terroristas palestinos, que tristemente tomaram o lugar dos movimentos igualmente terroristas judeus da primeira metade do século passado, encontram farta mão de obra.

Enquanto isso, especialmente a partir da expansão maior do estado judeu após a Guerra dos Seis Dias, o Estado de Israel adotou um modelo semelhante ao que deu aos Estados Unidos o seu território atual. Trata-se do medonho settler colonialism, ou colonização de povoamento, em que membros do grupo em expansão declaram suas as terras pertencentes aos autóctones, expulsando-os em geral pela violência ou por meios pouca coisa mais sutis (como a negação do acesso à água), de modo a aos poucos dominar áreas antes densamente povoadas pelos nativos. É assim que se opera a colonização israelense da Judeia, Samaria, Galileia e Golã (montanhas por sobre o Mar da Galileia, de tremenda importância estratégica, conquistadas à Síria na Guerra dos Seis Dias): casas feitas a partir de contêineres são levadas em caminhões durante a noite, sendo criado o fato consumado de uma nova cidadezinha com habitantes armados até os dentes, no mais das vezes ao redor da única fonte de água potável da região, forçando os nativos a buscar outro lugar para viver. O atual governo israelense, de extrema-direita e forçado, por razões políticas, a buscar o apoio incondicional dos partidos que dão apoio a esta modalidade de colonização, afirma pretender em breve proclamar que toda a Judeia e a Samaria (incluindo aí Belém e a vasta cidade árabe de Ramalá) são território nacional israelense, e para isso já conseguiram o importante apoio dos EUA. A base para tal proclamação está justamente na presença de inúmeras colônias israelenses organizadas do modo descrito acima.

Do outro lado, os movimentos antissionistas palestinos, de modo praticamente unânime, negam ao Estado de Israel por completo o direito de existir, o que dificulta tremendamente as negociações de paz. Costumam referir-se a ele apenas como “a entidade sionista” ou “a entidade inimiga” Propagam ainda a ficção de que a capital de Israel seria Tel Aviv (onde, pela partilha original proposta pela ONU, ela seria), como se o governo israelense não estivesse há coisa de cinquenta anos instalado em Jerusalém. A transferência da embaixada americana para lá, inclusive, causou enorme confusão mundial justamente por violar o acordo tácito de fingir que não é lá a capital.

Os territórios (duas áreas, separadas entre si) cedidos por Israel para o estabelecimento de um Estado palestino são governados por milícias terroristas, o Hamas (“Movimento de Resistência Islâmica”, religioso muçulmano sunita) e a OLP (“Organização de Libertação da Palestina”, mais ou menos secular, mas composto igualmente de sunitas). No Líbano, cujo precário equilíbrio entre muçulmanos sunitas, muçulmanos xiitas e católicos maronitas foi rompido pela súbita imigração de centenas de milhares de refugiados, a milícia xiita Hezbollah (“Partido de Deus”), apoiada pelo Irã (que não é árabe, mas é muçulmano xiita) tornou-se na prática o exército do país, tendo inclusive imposto a Israel sua primeira grande derrota militar e sendo, hoje, a maior ameaça à sobrevivência e à paz interna do estado judeu.

O ponto inicial e final deste texto é a questão religiosa, como não poderia deixar de ser dado o tema. Os judeus israelenses dividem-se entre várias identidades diferentes, ou, melhor dizendo, vários “judaísmos” diferentes. Os seculares, ou seja, arreligiosos, mas que se consideram de nação judaica, fazem serviço militar (em tese obrigatório para ambos os sexos) e são quase metade da população. São cerca de um terço os que se percebem como judeus por religião, guardam o sábado, mas não se sentem obrigados a seguir à risca os 613 mandamentos judeus. Os religiosos, dentre os quais os nacionalistas religiosos, são pouco mais de dez por cento. São estes que compõem a maior parte dos movimentos de colonização de povoamento das áreas árabes. O décimo final é composto daqueles que a mídia chama de “ultra-ortodoxos”, que — ao contrário dos demais grupos — não fazem serviço militar e, em alguns casos (como o da seita Naturei Karta) sequer reconhecem o Estado de Israel, por considerar blasfemo que seja proclamado um estado judeu antes da vinda do Cristo. No mais das vezes, contudo, os últimos dois tipos de judeus israelenses religiosos — independentemente de posição política — aderem a teses talmúdicas que os fazem ver os não-judeus como animais. Ambos os grã-rabinos israelenses já defenderam publicamente estas teses.

Ou seja: especialmente em questões religiosas, não é possível falar do povo israelense como um bloco monolítico. Os israelenses em geral, todavia — e isso é importante lembrar — tendem a botar no mesmo saco todos os árabes, inclusive os cristãos, vendo-os como no mínimo terroristas em potencial. Daí a facilidade política de ações do governo israelense contra a minoria cristã, que frequentemente tem terras confiscadas, igrejas destruídas, etc., e a unanimidade dos bispos da região na condenação do modo como o Estado de Israel trata os cristãos.

Tanto os nacionalistas religiosos quanto os ditos ultra-ortodoxos têm em comum enormes expectativas messiânicas, e buscam incessantemente recuperar as instituições religiosas do tempo do Segundo Templo. Afinal, este era o centro do judaísmo; o judaísmo rabínico dos últimos dois mil anos, em todas as suas formas, é outra religião, criada tardiamente para combater o cristianismo triunfante do Século II. Algumas instituições da religião do Templo — como a ordenação rabínica à moda antiga, que dependeria de um consenso entre os maiores rabinos, ou a formação de um Sinédrio — dependem apenas de que seja obtido um acordo entre eles, mas este parece jamais surgir. Outras, de consequências mais sérias, dependem de nada mais nada menos que a ação divina. Há já um movimento que busca retomar os sacrifícios de animais no antigo Templo, o que eu pessoalmente vejo como a “abominação da desolação” predita pelo profeta Daniel.

Todavia, para que os judeus tenham condições religiosas de adentrar sem arriscar a condenação divina, pelas próprias crenças, o terreno do antigo Templo, onde hoje está uma mesquita, de cúpula dourada, que se pode ver em qualquer fotografia de Jerusalém, há um prerrequisito. Devido ao estado de impureza ritual em que todos os judeus estariam pela ausência de sacrifícios no Templo, seria preciso que cada pessoa que lá subisse fosse submetida a um ritual de purificação dito da “água lustral”, descrito no capítulo 19 do Livro dos Números, na Bíblia. Para fabricar o tal líquido purificador, é necessária uma novilha vermelha, de três anos de idade, sem nenhum defeito (buraco de berne no couro, por exemplo), e com não mais que dois pelos de outra cor que não a vermelha. Todo o material necessário para a retomada dos sacrifícios de animais já está preparado, inclusive as roupas dos sacerdotes, mas falta ainda a novilha.

Há vários laboratórios de genética tentando criar tal animal no território israelense, em muitos casos com apoio de protestantes americanos, mas até agora sempre surgiu pelo menos um terceiro pelinho branco, invalidando aquele animal para o ritual. Se um dia eles conseguirem o bichinho e puderem preparar a água lustral, sua intenção é invadir a mesquita, matar todo mundo que esteja lá dentro e recomeçar os sacrifícios de bois, pombos e outros bichos, provavelmente provocando assim a Terceira Guerra Mundial. Afinal, poucas coisas enfureceriam mais as multidões muçulmanas do mundo inteiro que uma chacina de muçulmanos em oração bem onde Maomé teria pousado com o tal pocotó alado, mais ainda se em seguida começassem os sacrifícios judeus. Até mesmo os israelenses arreligiosos provavelmente não gostariam nem um pouco da coisa.

Já alguns protestantes americanos adorariam, e é por isso que estão ajudando: uma certa crendice, comum entre eles, diz que o papel do Estado de Israel na escatologia seria basicamente o de provocar uma guerra monstruosa (a Guerra de Gog e Magog de Ez 38–39 e Ap 19,7–8). Esta, por sua vez, provocaria de algum modo a volta do Cristo, com a subsequente conversão dos judeus ao protestantismo fundamentalista americano. Evidentemente, esta segunda parte não provoca lá muito entusiasmo entre os judeus religiosos que acham que os protestantes — não-judeus — nem gente são. Isto, evidentemente, não chega a impedir os nacionalistas religiosos israelenses de aceitar de muito bom grado a ajuda dos crentes gringos para conseguir fazer surgir a tal da novilha vermelha.

Moral da história: o Estado de Israel moderno, estabelecido pela ONU e fundado por nacionalistas seculares, não é nem poderia ser a Israel bíblica. Não apenas milênios os separam, mas todo o contexto (tanto religioso quanto nacional) agora é outro. Não existe isso de povos que se levantam das trevas da História para retomar de onde foram interrompidos. O próprio fato de metade da população judia israelense ser secular já nega a continuidade com os estados hebreus da região de milênios atrás. Aliás, é de Fé cristã tradicional que hoje Israel é a Igreja.

A adesão entusiástica do protestantismo americano ao militarismo israelense, por seu lado, é causada pela confluência de duas heresias que, felizmente, jamais ganharam muita tração no Brasil: uma diz que haveria várias alianças divinas ao mesmo tempo, o que faria do Povo de Israel ainda Seu povo eleito, ignorando a diferença ontológica entre o povo bíblico e os habitantes daquele país moderno. A outra defende a necessidade da tal guerra, e mesmo a benignidade de causá-la, para de algum modo “apressar a volta do Cristo”. Trata-se de algo vicioso desejar uma guerra, que por definição coloca em sério risco a população dum país que deveria ser um refúgio pacífico para os judeus perseguidos alhures.

O Estado de Israel precisa existir, para servir de refúgio aos judeus perseguidos, que só fazem aumentar em número com o avanço islâmico pela Europa. Todavia, ele poderia ter sido feito em algum lugar que não causasse tanta tristeza, tanta depredação e, principalmente, tantas esperanças e expectativas escatológicas, que não têm como fazer bem a quem quer que seja e que, receio, pode acabar por dificultar ou mesmo impedir sua sobrevida. Para alcançar a duração dos reinos cruzados, afinal, ainda faltam mais de trinta anos, e a paz decididamente não parece estar no horizonte. Menos ainda se ela depender dos americanos, cuja ajuda é dada por razões que, a médio e longo prazo, não ajudam em nada os habitantes do tão necessário estado judeu.

Como disse, foi feita a coisa certa, do jeito errado, no lugar errado. Mas agora é o que se tem, e é dever do Ocidente preservá-lo.

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