“Paralimpíadas”

Carlos Ramalhete
6 min readSep 13, 2016

A Paródia macabra das Olimpíadas

Deficiência não é espetáculo

O politicamente correto, perpetuamente empenhado em provar que guerra é paz, prisão é liberdade, doença é saúde e demais pseudo-tautologias da hipermodernidade, está fazendo o que pode para nos engrupir com outra delas. O limite, claro, que ninguém ali é bobo, é o lucro dos patrocinadores. Quando se chega ao momento em que eles o perderiam a palhaçada acaba.

A primeira etapa foi a megafesta das Olimpíadas, em que a beleza e a agilidade do corpo humano são celebradas, ou mesmo cultuadas. É parte da campanha permanente de — assumindo a dicotomia cartesiana entre corpo e alma — pregar a superioridade absoluta do corpo, da juventude, de força bruta. Nada de novo debaixo do sol: todas as ideologias assassinas do Século XX dedicaram-se a este culto, de que, aliás, as Olimpíadas de 1936 foram exemplo máximo. É a melhor maneira de tirar as pessoas da biblioteca ou de perto da subversiva companhia das gerações anteriores; se a juventude é melhor que a velhice, se a força vale mais que a sabedoria, certamente faz mais sentido jogar bola que estudar ou ouvir o que têm a dizer os anciãos.

Os Jogos Olímpicos são competições que reúnem pessoas extraordinariamente talentosas e bem treinadas, capazes de correr mais rápido, pular mais alto ou levantar mais peso que qualquer pessoa normal. São atletas de ponta; não só gente que se dedica em tempo integral àquela atividade esportiva desde a mais tenra infância, como gente agraciada com uma conformação física extremamente propícia à alta performance nela. Não é qualquer um que poderia alcançar o nível daquele pessoal, mesmo dedicando-se como eles se dedicaram: é preciso um corpo propício — com, por exemplo, braços longos ou curtos, calcanhares salientes ou não, etc. — que possa ser modelado e aprimorado ao longo de centenas de milhares de horas de treino. E, mesmo assim, o corpo sofre para alcançar e ultrapassar seus limites: a quantidade de cirurgias e tratamentos que são inevitáveis na carreira de um atleta olímpico deixa claro o quanto é violenta essa conquista dos próprios limites, mesmo sendo eles mais altos que os dos demais.

Depois das Olimpíadas, contudo, seguindo nisso criteriosamente os ditames do politicamente correto, entra em cena seu oposto: as “paralimpíadas”. A ideia seria que fossem “para-olimpíadas”, mas aparentemente alguma questão de copyright fez com que surgisse tão medonho neologismo. Talvez pós-olimpíadas, ou anti-olimpíadas, fosse um nome mais apropriado.

Nelas, em vez de se celebrar a saúde, festeja-se a deficiência e a doença (sempre no corpo, claro, pois é só ele que vale algo). O discurso é que se estaria celebrando a “superação”. Mentira. Superação é o que faz um atleta olímpico, que vai além do que um ser humano comum é capaz. Um deficiente convive com sua deficiência e procura fazer dela o melhor que pode, mas ele não a “superará”. Se o fizer deixará de ser deficiente, e o esforço extraordinário dispendido nisso servirá para torná-lo uma pessoa igual às demais naquele aspecto.

Ora, todos somos, em algum aspecto, piores que a média. Do mesmo modo, todos somos melhores que a média em algum outro aspecto. É assim que funcionam as médias: praticamente ninguém é mediano em um aspecto isolado, e quase todos são medíocres na média de seus talentos, com as deficiências sendo contrabalançadas pelas excelências e vice-versa. O que os atletas olímpicos fazem é, como vimos acima, tomar aquilo em que por natureza já são melhores que a média e treinar, treinar exaustiva e tecnicamente, machucando-se repetidas vezes no processo, até que sejam extraordinariamente melhores que os demais naquilo. Naquilo apenas, vejam bem; não é porque alguém nada tremendamente bem que ele saberá comportar-se em postos de gasolina, como a experiência olímpica nos mostrou.

Já o deficiente físico, no senso estrito do termo que habilita à participação na “paralimpíada”, é alguém que, por alguma razão, está completamente fora dos parâmetros de normalidade, e para pior. Um perneta, cego, amputado, o que for. Alguém que em outros tempos seria chamado de “aleijado”. A estes, dada a gravidade de sua lesão ou desordem, é impossível até mesmo alcançar — com o esforço que for — a normalidade. Alguém que não tem um pé nunca fará outro crescer, por melhor que se locomova com uma prótese.

Esses aleijões, contudo, como ocorre com qualquer deficiência ou excelência humana, são localizados. Não é porque o sujeito é perneta que ele se torna incapaz de desenvolver-se tremendamente em outro aspecto, em que não tenha deficiência alguma, e tornar-se parte de uma elite performativa daquela outra área. Um mudo, por exemplo, continua podendo ser nadador olímpico se tiver o corpo necessário e treinar como deve. Um perneta pode, como o cantor Roberto Carlos, desenvolver-se ao máximo na música ou em qualquer outro campo que não dependa da perna que não tem, e assim conviver saudavelmente com seu problema. Ninguém conhece Roberto Carlos como perneta, nem é ele o “Rei” dos pernetas. Ao contrário: ele procura ao máximo evitar atrair a atenção para sua deficiência, e é como cantor que ele desenvolveu-se à perfeição.

Como seu exemplo prova, pernetas podem ser excelentes cantores, assim como mudos ou fanhos podem ser excelentes atletas. As “paralimpíadas”, todavia, são como uma competição de cantores fanhos ou mudos, um curso de apreciação musical para surdos ou uma mostra de fotografias para cegos: uma piada de mau gosto, em que se chama toda a atenção exatamente para aquela única coisa em que são deficientes pessoas perfeitamente capazes em todo o resto. Uma corrida de pernetas é uma paródia macabra da superação atlética, em que a deficiência, a ausência, a incompletude e a imperfeição tornam-se o centro da atenção. Não se trata, nelas, de superar os limites do corpo humano, sim de negar a deficiência que se tem efetivamente, em vez de aceitá-la ordenadamente e dedicar-se a algo que se possa efetivamente fazer bem, algo em que não faça diferença se se tem todos os dedinhos. É um espetáculo quase circense de inadaptação à condição de deficiente, patético e triste como um anão que puxa briga em bares quando bebe demais. Não espanta que uma competidora, a belga M. Vervoort, pretenda matar-se depois dos Jogos e exiba a quem quiser ver o papel burocrático pelo qual o governo de seu país já autorizou seu abate, com todos os selos e carimbos necessários para a mais perfeita violação dos Mandamentos.

Ora, se da cintura para baixo eu não funciono, é da cintura para cima que eu posso melhorar e crescer. Identificar-me com o que é ruim em mim seria negar-me à verdadeira superação e aprimoramento. Mas é isso que demanda o politicamente correto, que ao mesmo tempo procura colocar no mesmo patamar o absolutamente extraordinário — a performance dos atletas olímpicos — e o que é tremendamente inferior ao ordinário — a patética performance dos aleijadinhos tentando negar a eles mesmos que os talentos que eles têm estão em outros aspectos de seu ser, e dedicando assim enorme esforço a atividades que lhes são evidentemente malpropícias.

As pessoas decentes que caem no conto do politicamente correto ficam tentando “torcer” por este ou aquele aleijadinho, apesar da agonia causada pela situação, achando que estão de alguma forma demonstrando aceitá-los, ou algo assim. Não é o caso; aceitá-los seria tratá-los como seres humanos cujo aleijão é irrelevante, não juntá-los em bandos cujo único ponto em comum é a presença daquele aleijão para, numa paródia de competição atlética, esfregar o coto de braço ou de perna na cara da sociedade, como se aquelas pessoas se resumissem aos membros que lhes faltam. Um perneta é alguém que tem tudo, menos uma perna. As “paralimpíadas” fazem dele e de sua humanidade íntegra mera moldura para a ausência de uma perna, negando-lhe tanto a humanidade quanto a dignidade.

Trata-se do espetáculo de um circo macabro cuja única razão de ser é uma espécie de “anulação” moral das Olimpíadas de verdade, equiparando-as a corridas de pernetas no mesmíssimo espírito que faz com que seja politicamente correto afirmar a sério que Mozart e o funk carioca sejam formas de música de igual valor. O que se busca com a exibição do que há de pior em tantas pessoas que só têm aquilo de realmente ruim (pois um perneta não tem razão alguma para ser muito pior que a média em nenhum outro quesito, por exemplo) é negar o bom, negar o bem, negar o belo. É chamar o patético de ético, e forçar os espectadores à confusão mental.

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