Pentecostes

O dia em que Deus nos deu Sua Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica

Carlos Ramalhete
10 min readMay 15, 2016
E tudo se encaixou num todo coeso

Pentecostes é uma festa muito incompreendida.

A maior parte das pessoas hoje em dia atém-se ao que é acidental e se esquece do essencial, deixando assim de entender o verdadeiro sentido do que se comemora. É, de uma certa maneira, como se alguém visse um avião gigantesco aterrissando e prestasse atenção apenas à marca de freada deixada por ele quando seus pneus tocaram o solo pela primeira vez. É algo que faz parte do espetáculo geral da aterrissagem, sem dúvida, mas empalidece em comparação com todo o resto. Prestar atenção apenas àquela borracha queimada no chão e ignorar as centenas de pessoas que vieram do outro lado do planeta saindo de um aparelho que voa mesmo pesando toneladas é muito parecido com o que se faz ao tratar Pentecostes como uma festa “do fogo”, “das línguas”, do (horresco referens) “entusiasmo”, etc.

Pentecostes é muito mais que isso: Pentecostes é o dia em que Deus nos deu o Corpo Místico de Cristo e Sacramento Universal da Salvação, a Igreja.

No Antigo Testamento, era exatamente naquele dia — sete semanas após a Páscoa — que se comemorava a entrega da Lei de Moisés ao povo israelita, ocorrida sete semanas após a saída dos hebreus do Egito. No Novo Testamento, o sentido pleno do que as festas judaicas anunciavam manifestou-se de maneira claramente ligada ao que Deus havia dado aos judeus para que preparassem o mundo para a vinda do Cristo.

Na Páscoa judaica, comemorava-se a fuga do Egito, o êxodo pelo qual o povo hebreu foi libertado miraculosamente de uma escravidão material. Em seguida, sete semanas depois, comemorava-se a aliança perfeita da descendência carnal de Israel e de Deus, efetivada pela entrega da Lei divina.

Na Páscoa cristã, comemoramos a nossa libertação da escravidão do pecado e da morte pela morte e ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo. Em seguida, sete semanas depois, comemoramos a aliança perfeita de toda a espécie humana e de Deus, que ocorre na Igreja.

O amor de Deus não é mais algo limitado à descendência de Israel segundo a carne: somos agora todos chamados à santidade, somos todos chamados a nos tornamos pelo Batismo filhos adotivos de Deus. Não há mais judeu nem grego: a Igreja é para todos; a Igreja é Católica, ou seja, Universal.

O Espírito Santo é o princípio de coerência da Igreja, como a alma o é do homem. A Igreja é a Igreja, é viva, é o Corpo Místico de Cristo, porque ela tem o Espírito Santo. É Ele que a anima (do latim animare, “dar alma”). Não se trata de uma coisa extra, a mais, como uma cafeína que deixa uma pessoa mais “animadinha”: não, o papel do Espírito Santo na Igreja é o mesmo da alma num ser humano: um ser humano sem a alma não é mais um ser humano. É um cadáver, decompondo-se rapidamente. Mesmo um pedaço cortado fora de um ser humano, por não estar mais animado, por não ter mais a coerência interna dada por ela ao resto do corpo, apodrece enquanto o homem de que ele foi cortado continua vivo. Sem o Espírito Santo, a Igreja não existiria. Do mesmo modo, como só há um único Espírito Santo, só há — só pode haver — uma única Igreja.

Na vinda do Espírito Santo em Pentecostes, assim, as “peças” deixadas por Nosso Senhor finalmente encaixaram-se. A Revelação divina que possibilitou aos Apóstolos e à própria Virgem Maria a perfeita compreensão do que antes era sabido, mas não plenamente entendido, foi a obra do Espírito Santo naquele dia e de lá em diante. Não se trata de um fenômeno passageiro, em que o Espírito fez alguns efeitos pirotécnicos impressionantes e depois saiu “soprando onde quisesse”, mas sim o momento em que a Igreja se fez Una, Santa e Católica. As línguas de fogo, a glossolalia, tudo isso são fenômenos perfeitamente laterais, como que as fagulhas que brilham momentaneamente quando se fecha um contato elétrico de alta-tensão. E, no caso da Igreja, é um contato que não deixa jamais de existir: Nosso Senhor nos mandou o seu Espírito — que é o Amor do Pai pelo Filho e do Filho pelo Pai — para que nós, que na Igreja nos tornamos filhos adotivos do mesmo Pai, possamos amar corretamente nosso Pai e por Ele sermos plena e perfeitamente amados.

É a versão perfeita, completa e eterna da obra já magnífica de Deus no Monte Sinai, quando ele deu aos israelitas a Lei que os separava dos povos pagãos ao redor. A Lei, a seu modo, foi a completude do próprio Êxodo. Sem este ela não seria possível, evidentemente; de que valeria uma Lei divina para um povo ainda escravizado? Mas, por outro lado, foi na Lei e pela Lei que o povo israelita pôde viver sua aliança com Deus Nosso Senhor durante todos os séculos, e foi na Lei e pela Lei que nasceu o próprio Salvador. A Lei, assim, completa a Páscoa judaica, ao dar ao povo israelita a sua aliança com Deus. Sem esta aliança na Lei, o povo israelita não seria ele mesmo; os hebreus teriam se dispersado, guardando talvez uma memória do êxodo, mas misturando-a com as falsas religiões pagãs do seu entorno. Sem a Lei, eles não teriam como corresponder ao amor imenso de Deus que os tirou do cativeiro egípcio.

Do mesmo modo, Pentecostes completa a Páscoa, sem a qual ele não seria possível. Foi o Sacrifício redentor de Nosso Senhor que tornou possível a existência da Igreja, mas foi em Pentecostes que a Igreja — onde e por onde vivemos a vida da graça em que esperamos a salvação — tornou-se realidade. Sem Pentecostes, não teríamos a Igreja, que está para a Nova Aliança como a Lei de Moisés estava para a antiga: ela é o local da aliança, ela é seu cerne. É na Igreja que podemos aceder à graça, e é apenas nela que podemos ser filhos de Deus. O que nos torna filhos de Deus — o Batismo único — é o mesmo que nos torna membros da Igreja única.

Com a vinda do Espírito Santo para animar (no sentido exposto acima: como a alma ao ser humano) a Igreja, tudo se encaixou. Os poderes dados por Nosso Senhor aos Apóstolos, Suas ordens e ensinamentos: tudo repentinamente tornou-se, para os membros da Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica que naquele momento surgia sobrenaturalmente, um todo coeso: a Sã Doutrina, a prática sacramental, tudo se uniu naquela uma só coisa já figurada pela túnica inconsútil de Nosso Senhor. Cada frase, cada palavra dita por Nosso Senhor passou a fazer pleno sentido; um gigantesco quebra-cabeças subitamente encaixou-se até a última peça, mostrando-se uma imagem lindíssima, além dos maiores sonhos de qualquer um dos discípulos. O mundo ao redor passou a fazer sentido. A realidade natural e a realidade sobrenatural passaram a fazer sentido, o mesmo sentido que agora ainda podemos perceber na Igreja. É por esta ação do Espírito Santo — com início no tempo, mas sem fim, como a Encarnação do Verbo — que nós, ainda hoje, dois milênios depois, podemos perceber a realidade natural e sobrenatural e viver na graça divina. Como o próprio Senhor havia dito antes aos Apóstolos: “rogarei ao Pai, e Ele vos dará um outro Consolador, para que fique eternamente convosco, o Espírito de verdade, a quem o mundo não pode receber, porque não O vê, nem O conhece; mas vós O conhecereis, porque habitará convosco, e estará em vós. […] Naquele dia conhecereis que Eu estou em Meu Pai, e vós em Mim, e Eu em vós. […] [O] Espírito Santo, a quem o Pai enviará em Meu Nome, Ele vos ensinará todas as coisas e vos recordará tudo o que vos tenho dito” (Jo 14).

O dia de Pentecostes foi o dia em que se cumpriu esta palavra do Verbo de Deus Encarnado. Por vezes me pego a meditar sobre como deve ter se sentido Maria Santíssima ao receber novamente, no dia de Pentecostes, o seu diviníssimo Esposo, o Espírito Santo, e por Ele e n’Ele perceber de maneira ainda mais clara e completa todo o seu papel na Salvação dos homens. O amor divino que a ela — também chamada Nossa Senhora do Amor Divino — tomou naquele momento, abrindo-lhe os olhos perfeitamente para que — mesmo na perfeita humildade que a fizera, 33 anos antes, estranhar a saudação angélica — visse como já estava preparado no Céu o seu trono de Rainha dos Céus e da terra, para que entendesse que aquele punhado de galileus apavorados, em Jerusalém pela santa obediência às palavras do Senhor que haviam visto subir aos Céus, haveria de se tornar a enorme descendência espiritual de Abraão, a encher toda a terra e todo o Céu, finalmente aberto aos homens.

Pentecostes, assim, é o dia em que a Lei de Deus do Antigo Testamento — “a Lei e os Profetas”, ou seja, a Tradição oral e escrita dos israelitas — foi perfeitamente cumprida (Mt 5). Muito mais que apenas a mera palavra de Deus revelada, foi-nos dado o próprio Verbo de Deus revelador, e assim foi-nos dada a oportunidade de, pelo Espírito Santo, participarmos de Seu Corpo Místico, comungarmos da vida interior da Santíssima Trindade, repetindo de maneira menor e mais imperfeita o que se completou na nossa Rainha, a Mãe da Divina Graça. Da Revelação recebida e obedecida passamos à vida no próprio Cristo, de Cujo Corpo Místico — a Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica — agora fazemos parte.

Aliás, é interessante percebermos como a Nova Aliança — ou Novo Testamento — aprofunda e cumpre perfeitamente a Antiga. Na Antiga Aliança, Israel respondia ao amor de Deus pela obediência à Sua Lei. A Lei divina era transmitida de geração em geração tanto pelos escritos mosaicos — o Pentateuco — como pela Tradição oral ininterrupta desde Moisés. É a esta que Nosso Senhor Se referiu ao dizer que os fariseus estavam “sentados na cátedra de Moisés”: não se tratava simplesmente de ter uma cópia dum texto, mas de ter a cátedra, o lugar privilegiado de ensino e interpretação nem um pouco individual da Lei. É uma relação bilateral, como qualquer aliança verdadeira: Deus ama e protege o povo israelita, e este obedece à sapientíssima Lei que Ele mesmo lhe deu.

Na Nova Aliança, todavia, a partir de Pentecostes — ocorrido no mesmo dia da entrega da Lei aos israelitas, repito! — a relação do homem e Deus é muitíssimo mais íntima. Nós não somos chamados apenas a crer e a fazer, ainda que também o sejamos. A Lei que nós temos não é uma série de regras, mas, muito antes, a vida dentro da Igreja. A vida como parte do Corpo Místico de Cristo, animado pelo Espírito Santo. Assim como a Santíssima Virgem Maria é ao mesmo tempo filha de Deus Pai, esposa de Deus Espírito Santo e mãe de Deus Filho, na Nova Aliança somos todos chamados a viver a vida interna de amor da Santíssima Trindade justamente pela vida na Igreja, que é a vida no Espírito Santo, que por Sua vez é o Amor do Pai pelo Filho — e pelos filhos — e do Filho pelo Pai — levando-nos, os filhos, conSigo. É ao estarmos pela graça do batismo no Corpo Místico de Cristo que nos tornamos filhos de Deus, e assim passamos a viver a profunda realidade mística deste Amor que é uma Pessoa: o Espírito Santo, que nos anima por sermos a Igreja, que nos assemelha ao Cristo de Cujo Corpo Místico somos membros.

É por isso que quando a Igreja passou a realmente existir plenamente, no dia de Pentecostes, a primeira reação dos Apóstolos foi a pregação. O amor à Verdade revelada na Igreja, o amor ao Verbo de Deus em Seu Corpo Místico, foi tão forte que o que eles diziam era ouvido e entendido perfeitamente por cada um como se fosse na sua própria língua. Notem que o principal não é o fato de os Apóstolos terem podido falar em línguas estrangeiras. Não; eles não o fizeram então. É a pregação que eles passaram a fazer, daquele momento em diante, que passou a ser a pregação da Igreja: a pregação católica, a pregação universal. A língua em que falavam não mudou; o que mudou foi a recepção do que era dito, que para cada pessoa ocorria em sua língua materna (At 2), no modo que lhe era mais adequado. Uma só Verdade, pois é um só Espírito e uma só Igreja, que cada pessoa percebia não como diferente do que percebia o irmão ao lado, mas como perfeitamente adequada a si mesmo, pois é assim a pregação da Igreja. Na Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica, cujo início no tempo é em Pentecostes, a Verdade única é perfeitamente adequada a cada pessoa, não importando de que povo, de que nação, de que herança cultural ou étnica ela seja. Uma só verdade, pois Nosso Senhor Jesus Cristo é a Verdade única; um só caminho, pois Nosso Senhor Jesus Cristo é o Caminho único; uma só Vida, e Vida Eterna, pois Nosso Senhor Jesus Cristo é a própria Vida. E é Ele mesmo, o próprio Cristo, que tem como Corpo Místico a Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica, de que somos membros no Espírito Santo. É, assim, apenas na Igreja Una que se pode dizer que Jesus Cristo é o Senhor, pois apenas ela é animada pelo Espírito Santo; dizê-lo fora da Igreja Católica é mentir, é afirmar em palavras um senhorio que se nega em atos pela recusa a tornar-se parte de Seu Corpo.

Ao comemorarmos Pentecostes, assim, não devemos nos ater aos “efeitos especiais” do fogo e da glossolalia, mas entender o que eles indicam, o que eles apontam: o início da Igreja, que é a Nova e Eterna Aliança; a transformação de um punhado de discípulos assustados, que guardavam sem entender as palavras e atos que presenciaram de Nosso Senhor, na Igreja magisterial e docente, que prega a Verdade única de maneira tão perfeita que cada pessoa a ouve como se fosse a própria mãe a falar; a presença de modo ainda mais completo e perfeito de Deus na terra com os homens, e dos homens no Céu com Deus, unidos permanentemente neste Amor infinito que é o Santo Espírito a animar o Corpo de Cristo, a Igreja.

A cada vez que rezamos um Pai-Nosso ou uma Ave-Maria; a cada vez que participamos da Santa Liturgia, a cada vez que ouvimos uma homilia; a cada vez que lemos os escritos dos Padres e Doutores; a cada vez que abrimos os Evangelhos (escritos, convém lembrar, muito depois de Pentecostes, já dentro da Igreja única e católica de que são filhos); a cada vez que rezamos o terço; a cada vez que damos comida a quem tem fome ou água a quem tem sede; a cada vez que visitamos os presos; a cada vez que pedimos a intercessão dos Santos ou nos consagramos à Virgem Mãe; a cada vez, finalmente, que percebemos o mundo ao nosso redor, toda a Criação, em seus componentes espirituais e materiais, naturais, sobrenaturais e preternaturais, pelo prisma esclarecedor e iluminador da Sã Doutrina, o que estamos fazendo é viver Pentecostes.

Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo.

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